O Cristão em Romanos 7

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O cristão em Romanos 7 é a tradução do texto homônimo de A. W. Pink publicado na Chapel Library.

A. W. Pink (1886-1952)

“Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte? Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor. De maneira que eu, de mim mesmo, com a mente, sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a carne, da lei do pecado” (Romanos 7:24,25).

Neste capítulo o apóstolo faz duas coisas: primeiramente, ele mostra o que é e o que não é na relação do crente com a Lei– judicialmente, o crente é emancipado da maldição ou penalidade da Lei (Rm 7:1-6); moralmente, o crente está obrigado a obedecer à Lei (vs 22, 25). Em segundo lugar, ele se protege contra uma falsa inferência que poderia ser tirada do que ele havia ensinado no capítulo 6. Em Romanos 6:1-11 ele expõe a identificação do crente com Cristo como “morto para o pecado” (vs 2, 7). Então, do versículo 11 em diante, ele mostra o efeito que esta verdade deveria ter na caminhada do crente. No capítulo 7 ele segue a mesma ordem de pensamento. Em 7:1-6 ele trata da identificação do crente com Cristo como “morto para a lei” (ver vs 4, 6). Depois, a partir do versículo 7 ele descreve as experiências do cristão. Assim, a primeira metade de Romanos 6 e a primeira metade de Romanos 7 tratam da posição do crente, enquanto a segunda metade de cada capítulo trata da situação do crente; mas com esta diferença: a segunda metade de Romanos 6 revela qual deveria ser nossa situação, enquanto a segunda metade de Romanos 7 (vv. 13-25) mostra qual ela é realmente.

O conflito no crente

A controvérsia que assolou Romanos 7 é em grande parte fruto do Perfeccionismo de Wesley e dos seus seguidores. O fato desses irmãos – a quem temos muitos motivos para respeitar – terem adotado este erro numa forma modificada, apenas mostra quão difundido hoje é o espírito do Laodiceanismo[1]. Falar de “sair de Romanos 7 para entrar em Romanos 8” é uma loucura indesculpável. Romanos 7 e 8 aplicam-se com força e relevância inalteradas a todos os crentes na terra hoje. A segunda metade de Romanos 7 descreve o conflito entre as duas naturezas no filho de Deus: simplesmente apresenta em detalhes o que está resumido em Gálatas 5:17. Romanos 7:14, 15, 18, 19 e 21 é agora verdadeiro para todos os crentes na terra. Todo cristão fica muito, muito aquém do padrão estabelecido diante dele – queremos dizer o padrão de Deus, não o dos chamados professores de “vida vitoriosa”. Se algum leitor cristão estiver pronto a dizer que Romanos 7:19 não descreve a sua vida, dizemos com toda a bondade que ele está tristemente enganado. Não queremos dizer com isso que todo cristão quebra as leis dos homens, ou que ele é um transgressor manifesto das leis de Deus. Mas queremos dizer que a vida dele está muito, muito abaixo do nível de vida que nosso Salvador viveu aqui na terra. Com isso queremos dizer que ainda há muito da “carne” evidente em todo cristão – até mesmo naqueles que se vangloriam tão ruidosamente de suas realizações espirituais. Queremos dizer que todo cristão tem uma necessidade urgente de orar diariamente pelo perdão dos seus pecados diários (Lc 11:4), pois “tropeçamos em muitas coisas” (Tg 3:2, R.V.).

A seguir nos limitaremos aos dois últimos versículos de Romanos 7, nos quais lemos: “Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte? Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor. De maneira que eu, de mim mesmo, com a mente, sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a carne, da lei do pecado.” (vs 24-25).

Esta é a linguagem de uma alma regenerada e sintetiza o conteúdo dos versículos citados anteriormente. O homem não regenerado é realmente miserável, mas não percebe a “miséria” expressa nesses versículos, pois nada conhece da experiência que evoca esse lamento. Todo o contexto é dedicado a uma descrição do conflito entre as duas naturezas no filho de Deus. “Porque, no tocante ao homem interior, tenho prazer na lei de Deus” (vs 22), não se aplica a ninguém mais do que as pessoas nascidas de novo. Mas aquele que assim “deleita” descobre “outra lei em seus membros”. Esta referência não deve ser limitada aos seus membros físicos, mas deve ser entendida como incluindo todas as diversas partes da sua personalidade carnal. Esta “outra lei” também atua na memória, na imaginação, na vontade e no coração.

Esta “outra lei”, diz o apóstolo, guerreou contra a lei da sua mente (a nova natureza), e não apenas isso, o fez “prisioneiro da lei do pecado” (vs 23). Até que ponto ele foi “aprisionado” não está claramente definido. Mas ele foi aprisionado, como todo crente. A divagação da mente ao ler a Palavra de Deus, o fluir de maus pensamentos coração (7:21) quando estamos em oração, as imagens horríveis que às vezes surgem diante de nós durante o sono – há tantos exemplos dessa prisão da “da lei do pecado”. “Se o princípio maligno de nossa natureza prevalecer em excitar um pensamento maligno, ele nos terá levado cativos. Até agora ele prevaleceu, e até agora fomos derrotados e tornados prisioneiros” (Robert Haldane, 1764-1842).

É a consciência deste combate dentro dele e desse cativeiro do pecado que faz com que o crente exclame: “Desventurado homem que eu sou!” Este é um clamor provocado por uma profunda compreensão do pecado que habita em nós. É a confissão de quem sabe que em seu homem natural não habita nada de bom. É o lamento triste de alguém que descobriu um pouco do horrível poço de iniquidade que existe em seu próprio coração. É o gemido de um homem divinamente iluminado que agora abomina a si mesmo – seu eu natural – e anseia por libertação.

A Experiência Normal do Crente

Este gemido, “Desventurado homem que eu sou!”, expressa a experiência normal do cristão, e um cristão que não geme assim está num estado espiritualmente anormal e doentio. O homem que não pronuncia esse clamor diariamente pode estar tão fora de comunhão com Cristo, ou ignorante do ensino das Escrituras, ou até mesmo bastante enganado sobre sua condição real, ao ponto de não conhecer as corrupções de seu próprio coração e o fracasso lamentável de sua própria vida.

Aquele que se curva ao ensinamento solene e penetrante da Palavra de Deus, que ali aprende sobre os terríveis destroços que o pecado causou na constituição humana, e que vê o exaltado padrão de santidade que Deus colocou diante de nós, não pode deixar de descobrir que miserável ele é. Se lhe for dado observar até que ponto ele está aquém de atingir o padrão de Deus; se, à luz do santuário divino, puder descobrir quão pouco se parece com o Cristo de Deus; então ele descobrirá que esta linguagem é a mais adequada para expressar sua tristeza piedosa. Se Deus lhe revelar a frieza de seu amor, o orgulho de seu coração, as divagações de sua mente, o mal que desafia seus atos mais piedosos, ele clamará: “Desventurado homem que eu sou!”. Se ele está consciente de sua ingratidão, de quão pouco aprecia as misericórdias diárias de Deus; se ele percebe a ausência daquele fervor profundo e genuíno que deveria sempre caracterizar seu louvor e adoração Àquele que é “glorificado em santidade” (Êx 15:11); se ele reconhece aquele espírito pecaminoso de rebelião, que tantas vezes o faz murmurar ou pelo menos se irritar com as dispensações[2] de Deus em sua vida diária? se ele tentar classificar não apenas os pecados cometidos, mas também os pecados de omissão, que ele comete diariamente, ele de fato clamará: “Desventurado homem que eu sou!”.

Nem são apenas os cristãos “apóstatas”, convencidos de seu pecado lamentarão assim. Aquele que está verdadeiramente em comunhão com Cristo também desferirá este gemido, e o fará diariamente, de hora em hora. Sim, quanto mais se aproximar de Cristo, mais descobrirá as corrupções de sua velha natureza e mais desejará ser libertado dela. Só quando a luz do sol inunda uma sala é que a sujeira e a poeira são totalmente reveladas. Portanto, é somente quando realmente entramos na presença dAquele que é a luz, que nos tornamos conscientes da sujeira e da maldade que habitam em nós e que contaminam cada parte do nosso ser. E essa descoberta fará com que cada um de nós clame: “Desventurado homem que eu sou!”.

“Mas”, alguém pode perguntar, “a comunhão com Cristo não produz alegria em vez de luto?” Nós respondemos, produz ambos. Foi o que aconteceu com Paulo. No versículo 22 do nosso capítulo ele diz: “Tenho prazer na lei de Deus”. No entanto, apenas dois versículos depois ele clama: “Desventurado homem que eu sou!” Esta passagem não é independente. Em 2 Coríntios 6 o mesmo apóstolo diz: “entristecidos, mas sempre alegres” (vs 10). Entristecidos por causa de seus fracassos, seus pecados diários. Alegres por causa da graça que ainda o sustentava e por causa da bendita provisão que Deus fez até mesmo para os pecados de Seus santos. Assim, novamente em Romanos 8:1, depois de declarar: “Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus”, e depois de dizer: “O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. Ora, se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo” (vs 16-17), o apóstolo acrescenta: “igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo.” (vs 23). Semelhante é o ensino do apóstolo Pedro: “Nisso exultais, embora, no presente, por breve tempo, se necessário, sejais contristados por várias provações” (1Pe 1:6). A tristeza e o gemido, portanto, não estão ausentes da espiritualidade mais elevada.

Nestes dias de complacência e orgulho de Laodicéia, fala-se muito e se vangloria sobre a comunhão com Cristo, mas quão pouca manifestação disso vemos! Onde não há sentimento de total indignidade, onde não há luto pela depravação total da nossa natureza, onde não há tristeza pela nossa falta de conformidade com Cristo, onde não há gemido por sermos levados ao cativeiro do pecado; em suma, onde não há clamor: “Desventurado homem que eu sou”, é de temer muito que não haja comunhão com Cristo.

Quando Abraão andou com o Senhor, ele exclamou: “Eis que me atrevo a falar ao Senhor, eu que sou pó e cinza”. (Gn 18:27). Quando Jó ficou face a face com Deus, ele disse: “Sou indigno” (Jó 40:4), e novamente: “Me abomino” (42:6). Quando Isaías entrou na Presença divina, ele gritou: “Ai de mim! Estou perdido! Porque sou homem de lábios impuros” (Is 6:5). Quando Daniel teve aquela visão maravilhosa de Cristo (Dn 10:5-6), ele declarou: “Não restou em mim nenhuma força, porque a minha formosura se transformou em corrupção” (vs 8 – tradução KJV). E numa das últimas epístolas do amado apóstolo aos gentios, lemos: “Fiel é a palavra e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal” (1Tm 1:15). Estas declarações não procederam de homens não regenerados, mas vieram dos lábios dos santos de Deus. Essas também não foram confissões de crentes desviados: antes, foram expressas pelos santos mais eminentes dentre o povo do Senhor. Onde, hoje, encontraremos alguém que esteja apto a ser colocado ao lado de Abraão, Jó, Isaías, Daniel e Paulo? Onde, de fato! E, no entanto, estes eram os homens que estavam verdadeiramente conscientes da sua vileza e indignidade!

As Confissões de Crentes Eminentes

“Desventurado homem que eu sou!”. Esta é a linguagem de uma alma regenerada. É a confissão do cristão normal (não enganado e não iludido). A substância disso pode ser encontrada não apenas nas declarações registradas dos santos do Antigo e do Novo Testamento, mas também nos escritos dos mais eminentes cristãos que viveram durante os últimos quinhentos anos. Na verdade, podemos perceber uma grande diferença entre as confissões e testemunhos dos santos do passado, e as jactâncias ignorantes e arrogantes dos laodicenses modernos! É revigorante passar das biografias atuais para aquelas escritas há muito tempo. Pondere nos seguintes extratos:

John Bradford (1510-1555), que foi martirizado no reinado da sangrenta Rainha Mary, numa carta a um companheiro de prisão em outra penitenciária, subscreveu-se assim: “O pecador John Bradford: um hipócrita muito bem retratado: o mais pecador miserável, de coração duro e ingrato, John Bradford” (1555 d.C.).

Samuel Rutherford (1600-1661) escreveu: “Este corpo de pecado e corrupção amarga e envenena nosso prazer. Oh, se eu estivesse em um lugar onde não pecasse mais!” (1650 d.C.).

O Bispo Berkeley escreveu: “Não posso orar, mas peco; Não posso pregar, mas peco; Não posso administrar nem receber o santo sacramento, mas peco. Meu próprio arrependimento precisa se arrepender: e as lágrimas que derramei precisam ser lavadas no sangue de Cristo” (1670 d.C.).

Jonathan Edwards (1703-1758), em cuja casa morreu aquele homem notável, o Sr. David Brainerd (o primeiro missionário entre os índios, e cuja devoção a Cristo foi testemunhada por todos que o conheceram), e com quem ele estava intimamente familiarizado, diz em suas Memórias do Sr. Brainerd: “Suas iluminações religiosas, afetos e conforto pareciam, em grande medida, acompanhados de humilhação evangélica; consistindo em um sentimento de sua própria insuficiência, desprezo e odiosidade; com disposição de resposta e disposição de coração. Quão profundamente afetado ele ficava, quase continuamente, com suas grandes falhas e com sua grande distância daquela espiritualidade e estado de espírito de santidade que era peculiar a um filho de Deus; com sua ignorância, orgulho, morte, esterilidade! Ele não era afetado apenas pela lembrança de sua antiga pecaminosidade, antes de sua conversão, mas também pela sensação de sua atual vileza e poluição. Ele não estava apenas disposto a pensar que outros santos eram melhores que ele; sim, considerar-se o pior e o menor dos santos; mas, muitas vezes, como o mais vil e o pior da humanidade.”

O próprio Jonathan Edwards, do qual poucos homens foram mais honrados por Deus – seja em suas realizações espirituais ou na medida em que Deus os usou para abençoar outros – perto do fim de sua vida escreveu assim: “Quando olho para meu coração e considero sua maldade, parece um abismo infinitamente mais profundo que o inferno. E parece-me que, se não fosse pela graça gratuita, exaltada e elevada à altura infinita de toda a plenitude e glória do grande Jeová, eu pareceria afundado em meus pecados abaixo do próprio inferno; muito abaixo da visão de tudo além dos olhos da graça soberana, os únicos que podem penetrar até tamanha profundidade. E é comovente pensar quão ignorante eu era, quando era um jovem cristão [infelizmente, tantos cristãos mais velhos ainda desconhecem isso—A.W.P.], das profundezas insondáveis da maldade, do orgulho, da hipocrisia e do engano deixados em meu coração” (1743 d.C.).

Augustus Toplady (1740-1778) (autor de “Rock of Ages”), escreveu assim em seu diário em 31 de dezembro de 1767: “Após uma revisão do ano passado, desejo confessar que minha infidelidade foi extremamente grande; meus pecados ainda maiores; e a misericórdia de Deus foi maior que ambas.” E novamente: “Minhas falhas e erros, minha incredulidade e falta de amor me afundariam no inferno mais profundo, se Jesus não fosse minha justiça e meu Redentor”.

Ouça as palavras daquela mulher piedosa, esposa do eminente missionário Adoniram Judson: “Oh, como me alegro por ter saído do turbilhão! Muito alegre, muito trivial para a esposa de um missionário! Pode ser, mas afinal de contas, a alegria é o meu pecado mais leve. É a minha frieza de coração, apatia, falta de fé, ineficiência e inércia espiritual, devido ao amor-próprio, essa pecaminosidade inerente e diariamente mimada da minha natureza, que me torno um mero bebê na causa de Cristo – não as atrações do mundo.”

John Newton (1725-1807) (escritor daquele hino abençoado, “Amazing Grace”), ao referir-se às expectativas que acalentou no início da sua vida cristã, escreveu assim: “Mas, infelizmente! essas minhas expectativas douradas têm sido como os sonhos do Mar do Sul. Até agora vivi como um pobre pecador e acredito que morrerei como tal. Eu, então, ganhei alguma coisa? Sim, ganhei aquilo que antes preferiria não ter! Uma certeza acumulada do engano e da maldade desesperada do meu coração, na medida que espero que, pela bênção do Senhor, Ele me ensine a saber o que quero dizer quando digo: Eis que sou vil… , tinha vergonha de mim mesmo quando o busquei, hoje tenho ainda mais.”

James Ingliss (editor de Waymarks in the Wilderness), no final de sua vida, escreveu ao Sr. J. H. Brookes: “À medida que sou levado a ter uma nova visão do fim, minha vida parece tão composta de oportunidades desperdiçadas e tão estéril de resultados, que às vezes é muito dolorosa; mas a graça vem para suprir tudo, e Ele também será glorificado em minha humilhação” (1872). Em que o Sr. Brookes observou: “Quão parecido com Ele e quão diferente das jactâncias daqueles que se gloriam em suas imaginadas realizações!”

Mais uma citação: desta vez de um sermão do falecido C. H. Spurgeon (1834-1892). Disse o príncipe dos pregadores: “Existem alguns cristãos professos que podem falar de si mesmos em termos de admiração; mas, do fundo do meu coração, detesto tais discursos cada vez mais, a cada dia que vivo. Aqueles que falam de maneira tão arrogante devem ter uma constituição muito diferente da minha. Enquanto eles se felicitam, me deito humildemente aos pés da Cruz de Cristo e me maravilho por estar salvo, pois sei que estou salvo. Preciso me perguntar por que não creio ainda mais em Cristo, também me questiono até mesmo como sou privilegiado em sequer crer nEle – me pergunto como não O amo mais e também chego a me perguntar se de fato O amo – me pergunto por que Não sou mais santo, e também me questiono se tenho algum desejo de ser santo, considerando a natureza poluída, degradada e depravada que ainda encontro em minha alma, apesar de tudo o que a graça divina fez em mim. Se Deus algum dia permitisse que as fontes das grandes profundezas da depravação se rompessem no melhor homem que existe, ele seria um demônio tão mau quanto o próprio diabo é. Não me importo com o que esses fanfarrões dizem sobre suas próprias perfeições, tenho certeza de que eles mesmos não se conhecem, ou não conseguiriam falar como costumam fazer. Há material inflamável suficiente em um santo que está mais próximo do céu que seria suficiente para incendiar um novo inferno, se Deus permitisse que uma faísca caia sobre ele. No melhor dos homens existe uma profundidade infernal e quase infinita de depravação. Alguns cristãos parecem nunca descobrir isso. Quase desejo que não o façam, pois é uma descoberta dolorosa para qualquer um, mas tem o efeito benéfico de nos fazer deixar de confiar em nós mesmos e de nos gloriar somente no Senhor.”

A libertação do crente

Poderíamos trazer outros testemunhos vindos dos lábios e das penas de homens igualmente piedosos e eminentes, mas temos exemplos suficientes para mostrar que motivo os santos de todas as épocas tiveram para tornar suas as palavras: “Desventurado homem que eu sou”. Algumas palavras agora sobre o versículo final de Romanos 7.

“Quem me livrará do corpo desta morte?” “Quem me livrará?” Esta não é a linguagem do desespero, mas da busca sincera por ajuda exterior e superior. Aquilo do qual o apóstolo desejava ser libertado é denominado “o corpo desta morte”. Esta é uma expressão figurativa para a natureza carnal denominada “o corpo do pecado” e em sua descrição ela possui “membros” (Rm 7:23). Portanto, entendemos que o significado do apóstolo é: Quem me livrará deste fardo mortal e nocivo – meu eu pecaminoso!

No versículo seguinte, o apóstolo responde à sua pergunta: “Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor”. Deveria ser óbvio para qualquer mente imparcial que isto aponta para o futuro. Sua pergunta foi: “Quem me livrará?” Sua resposta é: Jesus Cristo o fará. Como isso expõe o erro daqueles que ensinam sobre uma “libertação” presente da natureza carnal por intermédio do poder do Espírito Santo. Na sua resposta, o apóstolo nada menciona a respeito do Espírito Santo; em vez disso, ele cita apenas “Jesus Cristo, nosso Senhor”. Não seremos libertos “do corpo desta morte” pela obra presente do Espírito em nós, mas pela futura vinda do Senhor Jesus Cristo para nós. Só então é que este corpo mortal se revestirá da imortalidade, e esta corrupção se revestirá da incorrupção [conf 1Co 15:53,54].

Mas, para eliminar todas as dúvidas de que esta “libertação” é futura, o apóstolo conclui dizendo: “De maneira que eu, de mim mesmo, com a mente, sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a carne, da lei do pecado”. Que cada leitor observe cuidadosamente que isso ocorre depois de ele ter agradecido a Deus por ser “libertado”. A última parte do versículo 25 resume o que ele disse na segunda parte de Romanos 7. Descreve a vida dupla do cristão. A nova natureza serve à lei de Deus; a velha natureza, até o fim da história, servirá à “lei do pecado”. Que foi isso que aconteceu na experiência do próprio Paulo fica claro pelo que ele escreveu no final de sua vida, quando se autodenominou “o principal” dos pecadores (1Tm 1:15). Isso não era o exagero pelo seu fervor evangélico, nem era a falsa modéstia da hipocrisia. Foi a convicção segura, a experiência sentida, a consciência estabelecida de alguém que viu profundamente as profundezas da corrupção dentro de si mesmo e que sabia o quão longe, muito aquém, ele estava do padrão de santidade que Deus colocou diante dele. Tal também será a consciência e a confissão de todos os outros cristãos que não estão cegos pela presunção. E o resultado de tal consciência será fazê-lo desejar mais ardentemente e agradecer a Deus mais fervorosamente pela libertação prometida no retorno de nosso Salvador e Senhor, quando Ele ” o qual transformará o nosso corpo de humilhação, para ser igual ao corpo da sua glória, segundo a eficácia do poder que ele tem de até subordinar a si todas as coisas” (Fp 3:21); e tendo feito isso, Ele nos “apresentar com exultação, imaculados diante da sua glória” (Jd 24). Aleluia, que Salvador!

É notável que a única outra vez que essa palavra é usada no Novo Testamento ela foi traduzida por “infeliz”[3] e é encontrada em Apocalipse 3:17. Ali, Cristo diz aos Laodicenses: “nem sabes que tu és infeliz!” Eles se vangloriavam de que não precisavam “de coisa alguma”. Eles estavam tão cheios de orgulho, tão satisfeitos com suas realizações, que não percebiam sua miséria. E não é isso que testemunhamos hoje por todos os lados? Não é evidente que vivemos agora no período laodiceiano da história da cristandade? Muitos estavam conscientes da “necessidade”, mas agora imaginam que receberam “a segunda bênção”, ou “o batismo do Espírito”, ou que entraram na “vitória”; e, ingenuamente imaginam que sua “necessidade” foi atendida. E a prova disso é que eles “não sabem” que são “infelizes”. Com um ar de superioridade espiritual, eles dirão que “passaram de Romanos 7 para Romanos 8”. Com lamentável complacência dirão que Romanos 7 já não descreve mais a sua experiência. Com presunçosa satisfação, eles olharão com piedade para o cristão que clama: “Miserável homem que eu sou”, e como o fariseu no templo, agradecerão a Deus por ser diferente com eles. Pobres almas cegas! É justamente para esses que o Filho de Deus diz aqui: “E não sabes que és infeliz”. Dizemos, almas “cegas”, pois é para esses laodicenses que Cristo diz: ‘Unge os teus olhos com colírio, para que vejas!’ (Ap 3:18). Deve-se observar que na segunda metade de Romanos 7 o apóstolo usa o singular. Isto é impressionante e muito abençoado. O Espírito Santo quer nos dizer que as mais altas realizações na graça não isentam o cristão da experiência dolorosa ali descrita. O apóstolo retrata com uma caneta mestra – tendo ele mesmo sentado como ilustração – as lutas espirituais do filho de Deus. Ele ilustra, tomando como referência sua própria experiência pessoal, o conflito incessante que é travado entre as naturezas antagônicas daquele que nasceu de novo.

Que Deus, em Sua misericórdia, nos livre do espírito de orgulho que agora corrompe o ar da cristandade moderna, e nos conceda uma visão tão humilhante de nossa própria impureza, que nos juntemos ao apóstolo clamando com fervor cada vez mais profundo: “Desventurado homem que eu sou!” Sim, que Deus conceda ao escritor e ao leitor tal visão de sua própria depravação e indignidade, que eles possam de fato rastejar no pó diante dEle, e ali louvá-Lo por Sua maravilhosa graça para com esses pecadores merecedores do inferno.

[1] Laodiceanismo – Auto-satisfação cega (Ap 3:15-18).
[2] Dispensações no sentido de ordenação dos eventos debaixo da autoridade divina
[3] Talaiporos [ταλαιπωρος] – mesma palavra usada e traduzida como “Desventurado” em Romanos 8:24. Essa palavra é usada somente 2 vezes no Novo Testamento e é nesses dois textos. Significa aflito, desgraçado, infeliz (Dicionário Mounce).

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