O artigo “A Libertação de Jó e a Porção Dobrada” é uma coletânea do capítulo 20 do livro “The Story of Job”, de Jessie Penn-Lewis .
Jessie Penn-Lewis (1861 – 1927)
“Mudou o SENHOR a sorte de Jó, quando este orava pelos seus amigos; e o SENHOR deu-lhe o dobro de tudo o que antes possuíra” (Jó 42:10)
Não está escrito que o Senhor mudou o cativeiro de Jó e então ele orou por seus amigos, mas sim que sua liberação ocorreu enquanto Jó orava por eles!
Jeová Se revelou a Jó, repreendeu seus pretendentes a colaboradores, e o reconheceu como servo [Jó 42:1-9]. No entanto, exteriormente, Jó ainda permaneceu um homem afligido, privado de tudo que outrora possuiu; sem casa, amigos, um “necessitado sobre o monturo” [1 Sm 2:8 / Sl 113:7].
Certamente era Jó que necessitava de oração em primeiro lugar; ele deveria ser liberto antes de poder orar pelos outros. Mas não! Jeová instruiu os três homens para ir até o banido assentado sobre o monte de cinzas, pois o Senhor aceitaria da parte dele a oração.
O Senhor não mencionou nada a respeito da libertação do próprio Jó, mas Ele disse que aceitaria sua oração. Quando ele orasse pelo seus acusadores, Jó deveria, portanto, colocar de lado todos os pensamentos relacionados à sua presente condição e deveria cooperar com a vontade conhecida de Deus. Ele não deveria esperar por uma manifestação exterior de libertação de suas próprias tristezas, mas deveria colocar seus assuntos e interesses pessoais de lado, a fim de atender às necessidades de seus amigos.
Quando os três homens vieram até ele, que ainda era um homem quebrado, Jó pode ter pensado em seu coração: “Será que devo pensar primeiro nos meus pretendentes a consoladores, que me condenaram e me trataram com tamanha severidade? Eles devem ser perdoados e abençoados enquanto eu, aquele que Deus reconheceu como Seu servo, sou totalmente desconsiderado? Será que não existe libertação para mim?”.
Os três homens vieram até Jó, e ainda que exteriormente ele fosse um necessitado, ainda assim agiu como um príncipe! Como o Senhor disse que Ele aceitaria sua oração, então ele descansa na palavra do Deus vivo e age como um príncipe da esfera celestial – um príncipe usando o poder com Deus!
O Verdadeiro Teste
Jó ora por seus amigos. Que teste para seu espírito! Ele deve orar com desejo, ou sua oração será vã. Será que ele realmente, com toda a sua alma, deseja que os homens que o interpretaram mal, de forma tão cruel, e lidaram com ele com tamanha dureza fossem agora perdoados e abençoados, enquanto ele ficaria aparentemente sem libertação, sobre o monte de cinzas fora da cidade?
Sim, Jó foi capaz de orar de tal maneira que ele prevaleceu com Deus. Ele pediu a bênção pelos outros, mesmo não podendo pedir por si mesmo! Assim como o Senhor Jesus orou em meio aos seus sofrimentos por aqueles que o crucificaram, tal foi a oração de Jó.
O espírito do Jesus crucificado é visto e manifesto em Jó, mesmo quando, prefigurando de forma maravilhosa os passos do Mestre, ele trilhou o caminho da cruz.
Jó ora, e à medida que faz isso, a palavra de poder é dita do trono: “Liberte o… encontrei um Resgate”. A alma de um rei nos grilhões da aflição é liberada, seu cativeiro é trocado, e os dias de luto acabaram.
Nada é dito sobre a forma que o cativeiro de Jó foi mudado! O resultado imediato da palavra de libertação não é dito, possivelmente porque tem pouca importância aos olhos do Senhor, que olha para o coração. Também é possível que o Sábio Senhor sabia como Seus filhos, na fornalha da provação, seriam tentados a colocar suas mentes no sinal visível e exterior da bênção, e não na graça espiritual interior, que tem grande valor para Ele.
É suficiente para nós saber que o ponto de virada da trilha de provação de Jó veio quando ele desistiu inteiramente de si mesmo e orou por seus amigos.
Se você está passando pelo calvário da provação, aprenda essa lição: você foi despido de toda a sua força e poder do passado; se contorceu e agonizou por livramento das cadeias da aflição, teve a luz do Senhor sobre você, agora repudia a si mesmo e imagina quando a libertação vai acontecer.
Você consegue ver nessa lição diante de você que o seu cativeiro será mudado quando você se colocar de lado e entregar-se nas mãos de Deus?
Quando você parou de pensar nas suas próprias necessidades, no seu vazio e pobreza, e se entregou para ministrar a outros, não se preocupando consigo mesmo? Quando, de todo do seu coração, você desejou mais bênção para outros do que para si mesmo, e descansou contente na vontade de Deus, independente de haver libertação da fornalha ou não, desde que você possa contar com a melhor ressurreição e saiba que vai brilhar como uma jóia na coroa do Mestre?
A Porção Dobrada
No versículo 10, vemos que “o Senhor lhe deu o dobro de tudo que antes possuía”. Ali vemos um vislumbre do coração de Deus e do Seu propósito em colocar Seus amados no calvário. Jeová devolve a Jó mais do que Ele tirou; sim, Ele acrescenta “o dobro” (Veja Isaías 61:7).
O “dobro” dado a Jó nesse ponto da sua história espiritual é explicado de forma contundente por outras passagens das Escrituras.
Nos estatutos dados a Israel, vemos que a “porção dobrada” era um direito peculiar do filho mais velho. O pai deveria reconhecer o filho primogênito “dando-lhe dobrada porção de tudo quanto possuía, porquanto aquele é o primogênito do seu vigor; o direito da primogenitura é dele” (Dt 21:17).
Mais à frente, aprendemos que quando Eliseu pediu a Elias algo, antes que ele fosse tomado dele, Eliseu disse: “Peço-te que me toque por herança porção dobrada do teu espírito”. A Versão Revisada (Inglês) diz em sua margem que ele pediu pela porção do primogênito (2 Rs 2:9,10).
A resposta de Elias foi muito estranha! Ele disse que Eliseu pediu uma coisa difícil, mas se ele o visse quando ele fosse tomado, seu pedido seria atendido. Eliseu viu Elias quando ele foi subitamente transladado no carro de fogo. Então “tomando as suas vestes, rasgou-as em duas partes” e tomou o manto que caiu de Elias, quando ele saiu de seu campo de visão para o mundo invisível. O manto tipificava o Espírito derramado, que depois caiu sobre os discípulos que aguardavam em Jerusalém – o dom do Senhor que havia ascendido para Sua igreja (At 2:33).
Mas porque Elias disse que Eliseu tinha pedido “dura coisa”, quando a porção do primogênito era o direito do filho mais velho?
A “porção dobrada” da plenitude do Espírito é um direito de nascimento de todos os que são nascidos de Deus, mas é algo “duro” para a carne do filho de Deus ser verdadeiramente quebrado ao ponto de recebê-la.
Eliseu tomou suas próprias vestes e as rasgou em duas partes! Assim, devemos ser quebrados por todos os lados antes que possamos conhecer, em realidade, toda a plenitude que é tipificada pela porção do primogênito.
Verdadeiramente o caminho de Jó para a porção dobrada foi uma “coisa dura”. O quebrantamento do homem exterior lhe custou muitas lágrimas. Sua tenacidade de fé no Senhor (que é o sentido espiritual da visão fixa de Eliseu sobre Elias) também foi “uma coisa difícil”. Foi difícil, “esperar contra a esperança, e crer” [Rm 4:18], e ainda mais difícil ser despido de “suas próprias roupas”, no sentido de ser um homem quebrado – despido de tudo o que antes lhe concedia autoridade e poder – tomar o lugar de intercessão com Deus pelos outros, enquanto exteriormente ele ainda era um homem ferido.
O Caminho Aberto pelo Filho de Deus
O Filho de Deus é expressamente chamado “o Primogênito”, porque está escrito: “E, novamente, ao introduzir o Primogênito no mundo, diz: E todos os anjos de Deus o adorem” (Hb 1:6). Mas Cristo não foi apenas o Filho Primogênito de Deus neste mundo, mas o Primogênito dos mortos no outro mundo.
O véu do Seu corpo foi rasgado na cruz do Calvário, assim como, do Seu lado rasgado, foi derramado sangue e água, uma fonte aberta pelo pecado de todo o mundo. Ele foi levado ao túmulo, foi levantado dos mortos, ascendeu aos céus e se assentou à destra da Majestade nas alturas como “o Primogênito de muitos irmãos” (Rm 8:29), que seriam conformados à Ele e, como Ele, passariam da morte para a vida, do sofrimento para a glória. Porque “Ele é a Cabeça do Corpo, da igreja…o Primogênito dentre os mortos” (Cl 1:18) e, unidos a Ele, eles são a “igreja dos Primogênitos que está arrolada nos céus” (Hb 12:23).
O Pai reconheceu o Filho como o Primogênito, dando a Ele a unção como a nenhum dos Teus companheiros [Hb 1:9]. Nele, e por meio Dele, os filhos também compartilham da porção dupla da sua raça – a raça dos filhos “Primogênitos” de Deus – aqueles que serão participantes da “primeira ressurreição” (Ap 20:6), “herdeiros de Deus, e co-herdeiros com Cristo, se com ele sofrermos, também com Ele seremos glorificados” (Rm 8:17).
Escolhendo o Caminho Difícil ao Lado do Senhor
Tudo isso traz luz aos tratos de Deus com Jó. Ele conheceu o poder do Espírito em sua vida, quando vemos a descrição de seu serviço, mas através dessa prova escaldante, ele foi conduzido de fé em fé a um aprofundamento que o preparou para receber “duas vezes mais do que tinha antes”.
Mais uma vez, vemos a maravilhosa harmonia das Escrituras e a mensagem que não muda através dos muitos e diversos caminhos contidos nesse livro maravilhoso que chamamos de Bíblia. Como Deus imutável, um dia é como mil anos e mil anos são como um dia. Para Ele não existe limite de tempo, ou qualquer mudança nos Seus princípios em lidar com os Seus. É sempre a mesma história, e um tema constitui a base das histórias de todo o Seu povo.
Em Jó vemos a “coisa dura” manifestada no fogo da provação, e então a porção dobrada de sua restauração – prefigurando nossa vida de ressurreição em união com o Senhor ascenso.
Em Eliseu vemos a “coisa dura” na firmeza de sua visão fixa sobre o profeta Elias que estava prestes a partir, e o rasgar de suas vestes, seguido da recepção do manto que caiu do profeta de Deus.
Em Cristo – para quem tudo aponta e em quem todos são abençoados – vemos a “coisa dura” da morte no Calvário, seguida pela dispensação da unção do Espírito e Sua própria exaltação no trono do Pai.
Portanto, isso deve ser real para cada membro do Seu corpo. Eles devem escolher a “coisa dura” da comunhão com Ele na Sua cruz, se vão ser verdadeiramente unidos a Ele como os Primogênitos dentre dos mortos, participando da unção que Ele recebeu acima de Seus companheiros, e finalmente se assentar com Ele no trono de Seu Pai.
Sem dúvida vemos repetidamente quão verdadeiramente o Senhor é a “Causa Primeira” do Seu Povo.