T. Austin-Sparks (1888-1971)
“Eles, pois, o venceram por causa do sangue do Cordeiro e por causa da palavra do testemunho que deram e, mesmo em face da morte, não amaram a própria vida” (Apocalipse 12:11).
Consideremos o percurso do Vencedor até o Trono. A última coisa dita pelo Senhor ressurreto à Igreja em Sua profecia descrita em Apocalipse, no capítulo 3, está no verso 21: “Ao vencedor, dar-lhe-ei sentar-se comigo no meu trono, assim como também eu venci e me sentei com meu Pai no seu trono.”
Em Apocalipse 12, no verso 5, está a consumação dessa promessa: “E o seu filho foi arrebatado para Deus até ao seu trono.” No verso 11, temos a explicação de como aquelas pessoas venceram. Percebemos três fatores que foram primordiais nessa vitória: o Sangue, a Cruz e a Vontade de Deus.
Assim, antes mesmo de pensarmos em usar o Sangue do Senhor Jesus para lidar com o problema do nosso pecado, devemos ver que existe algo mais relacionado a ele. Precisamos reconhecer que seu fundamento foi o cumprimento da Vontade de Deus.
Não obteremos autoridade sobre o inimigo mecânica ou automaticamente. Isso não acontecerá por meio do aprendizado, compreensão de verdades doutrinárias, adoção de certas atitudes, concepções mentais e fraseologia. Muitos dos que adotaram tais ‘técnicas’, se tornaram apenas brinquedos nas mãos do inimigo, pois ele tem se divertido às custas de sua fraseologia, termos e atitudes.
A vitória reside numa obra interior, forjada espiritualmente pelo Espírito Santo. Certos elementos espirituais precisarão se tornar parte da natureza e constituição do Vencedor. Tudo isso se trata de algo espiritual, não teórico.
Mas, então, qual seria o item básico a ser forjado na constituição do crente, que o tornaria num vencedor? O que é esse fator que concede poder sobre o inimigo e suas hostes? A raiz de tudo está atrelada à vontade de Deus, que é o tema central da batalha de todas as eras.
Nessa pequena frase, muito comumente pronunciada entre os cristãos, “seja feita a Tua vontade”, vemos o ponto focal desse combate que é incessantemente travado entre as forças celestiais e as do inferno. Tudo se concentra na questão do “seja feita a Tua vontade”.
Todas as eras convergem nessa direção. Esta foi a questão que desencadeou a batalha entre o céu e o inferno.
Quando dizemos: “assim na terra como no céu”, definimos o palco, o lugar onde esse problema será resolvido. Esta terra se torna o lugar onde será levada a termo a vontade de Deus.
A Vontade de Deus e a Nossa Vontade
Dessa forma, podemos compreender a encarnação de Deus em Cristo. Existe um fato real que acontece dentro de nós, e é existência de uma vontade que não está sujeita à vontade de Deus. É certo que por muitas vezes nos esquecemos disso, e ficamos tão surpresos e desconcertados quando nos deparamos com esta verdade. Sim, de vez em quando, passamos por conflitos terríveis, e tudo por causa dessa outra vontade. Que surpreendente!
Nós, que pensávamos que éramos totalmente do Senhor, somos surpreendidos de tempos em tempos, quando passamos por maus bocados porque as coisas não saíram exatamente como nós desejávamos, de acordo com nossa oração e da maneira que acreditávamos que deveriam ser conduzidas. Mas tudo isso, dentro da nossa perspectiva, acontece motivado pelos interesses do Senhor. Sim, supostamente pelos Seus interesses.
Nunca sabemos quão forte é a nossa vontade, até que Deus nos coloque em situações em que traímos a nós mesmos devido aos tratos do Senhor conosco, e nos comportamos de forma totalmente diferente do que imaginamos que faríamos.
Nesses momentos, entramos em uma controvérsia com o Senhor, e o teste predominante se relaciona com a vontade de Deus. A prova toma lugar exatamente naquele ponto onde dizíamos: “Claro, seja feita toda a vontade de Deus”. Ah, mas isso tudo estava na superfície, e nós não sabíamos que envolvia algo muito mais profundo, e que esta outra vontade iria se manifestar a partir de nossa própria natureza.
Na medida em que estivermos nessa posição, estaremos em condição de fraqueza, e o inimigo terá um terreno para nos derrotar, de poder sobre nós. Por isso digo que tudo precisa ser forjado em nossa constituição, e não basta apenas adotar uma atitude mental em relação à vontade de Deus. Precisamos chegar ao ponto onde uma mudança nas condições ao nosso redor não nos abalará, porque algo foi mudado dentro de nós, a vontade de Deus operou, se tornando na nossa própria natureza. Nós nos tornamos, então, participantes da natureza Divina.
Este grupo de Vencedores será provado pelo fogo, tendo a vontade de Deus gravada em sua própria constituição. É nessa base que nós seremos vencedores.
Como podemos ver isso em Apocalipse 12? No sangue. “Eles, pois, o venceram por causa do sangue do Cordeiro”.
Mas o que isso significa? Significa que o Senhor Jesus “derramou a Sua alma na morte” (Is 53:12). Quando? Como? Quando disse: “Pai, se queres, passa de mim este cálice; contudo, não se faça a minha vontade, e sim a tua” (Lc 22:42). E também, quando afirmou: “É chegada a hora de ser glorificado o Filho do Homem. Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, produz muito fruto. Quem ama a sua vida [alma] perde-a; mas aquele que odeia a sua vida [alma] neste mundo preservá-la-á para a vida eterna” (Jo 12:23-25).
No derramamento do Sangue do Senhor Jesus, a vida da Sua alma foi entregue até à morte. Isso ocorreu por meio da Sua aceitação absoluta da vontade Divina. Esse sangue derramado registrou o triunfo da vontade de Deus, e foi levado pelo Senhor até a Sua presença, como um testemunho de uma vontade aperfeiçoada.
Então na frase “mesmo em face da morte, não amaram a própria vida”, e também na “palavra do testemunho que deram“, vemos o fundamento dos Vencedores baseado no sangue do Senhor Jesus. Esses princípios são patentes. O sangue representa a vontade de Deus aperfeiçoada na vida do Primeiro e Supremo Vencedor, o Senhor Jesus. Pela palavra do nosso testemunho, estamos baseados no fundamento desse Sangue. Esse sangue venceu a outra vontade, em favor da vontade de Deus. Essa é a palavra do nosso testemunho; não é uma doutrina, mas algo forjado por meio da experiência.
Os Tratos de Deus Conosco e Suas Aparentes Contradições
Então percebemos que os tratos práticos de Deus conosco visam nos conduzir a uma vida que é regida interiormente por Sua vontade. Esta é a explicação de todas as nossas tentações, provações e das aparentes contradições que nos acometem e que são permitidas pelo próprio Senhor. Digo sim, “aparentes” contradições. Muitas vezes nos encontramos em uma posição onde tudo parece se contradizer, até mesmo o Senhor.
Vejamos as provas de Abraão. Deus lhe prometeu um filho e disse que tudo aquilo que se relacionava à promessa e aliança Divinas estariam atrelados à Isaque, que foi trazido à existência por meio de um milagre. Então, o Senhor diz à Abraão para ir até o monte e oferecer Isaque como holocausto, e nada mais. O Senhor parecia Se contradizer. Essas aparentes contradições, os atrasos Divinos, as decepções, os reveses; todas estas coisas trazem à luz a manifestação da nossa própria vontade.
Digo isso me referindo à experiências espirituais dos filhos do Senhor que são sinceramente dedicados à vontade de Deus, pelo menos tanto quanto entendem isso em seus próprios corações. Ainda assim, todos nós passamos por estas provações, e nos deparamos com tentações graves e com provas, contradições, atrasos, decepções, retrocessos… todas estas coisas nos acometem.
O Senhor sabe melhor do que nós como é enganoso nosso coração, acima de todas as coisas. Ele sabe exatamente o quanto nós desejamos algo, o quanto aquilo nos atrai secretamente! Ele nos conhece. Temos que chegar ao ponto onde, pela graça de Deus, poderemos realmente nos posicionar em certos assuntos, livres de nossas preferências pessoais a respeito deles, mas de fato nos importando que o Senhor tenha aquilo que Ele deseja.
Somos Aperfeiçoados em Cristo
Finalmente, é muito importante lembrar que a vontade de Deus já foi aperfeiçoada em Cristo, e Ele tem em Si mesmo garantida nossa perfeição na vontade de Deus. Leia novamente Hebreus 10:10: “Nesta vontade é que temos sido santificados…“. Somos aperfeiçoados para sempre, pela vontade de Deus cumprida em Cristo. “Eis aqui estou para fazer, ó Deus, a tua vontade” (Hb 10:9). “Nesta vontade é que temos sido santificados“.
O Senhor Jesus já cumpriu essa vontade, garantindo a nossa perfeição em Deus por meio de Sua vida, e isso agora, nesse exato momento, tudo baseado no fundamento de que algo já foi realizado por Sua Pessoa. Essa é uma verdade firme e viva, um fato ao qual nada pode ser acrescentado. Ele enviou o Espírito Santo para implantar isso naqueles que O recebem, como um poder energizador da vontade de Deus. Deus, o Espírito Santo trabalhando, operando em nós tanto o querer como o realizar, segundo a Sua boa vontade. É uma coisa abençoada estar ligado a algo que já foi feito.
Na hora em que formos desafiados, quando afinal, a vontade de Deus não for tão fácil de aceitar, quando estivermos passando pela prova, e quando estivermos passando por nosso Getsêmani pessoal, e o cálice nos for oferecido, então, o que será?
Lembremo-nos de Filipenses 2:13: “porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a Sua boa vontade“.
Se Ele não fizer essa obra, não seguiremos em frente, mas por meio desse operar de Deus, seremos “fortalecidos com poder, mediante o seu Espírito no homem interior” (Ef 3:16), nos tornando Vencedores, e assim chegaremos ao ponto onde Satanás será roubado de seu terreno de poder sobre nós, porque a vontade de Deus será perfeitamente cumprida aqui e agora. Estaremos desfrutando disso experimentalmente.
Extraído do capítulo 2 do livro “The Overcomer at the End-Time”, de T. Austin-Sparks, publicado no site www.austin-sparks.net.
T. Austin Sparks (1888-1971) nasceu em Londres e estudou na Inglaterra e na Escócia. Aos 25 anos, iniciou seu ministério pastoral, que perdurou por alguns anos, até que, depois de uma crise espiritual, o Senhor o direcionou a abandonar aquela forma de ministério, passando a segui-Lo integralmente naquilo que parecia ser “o melhor que Deus tinha para ele”. Sparks foi um homem peculiar, que priorizava os interesses do Senhor em vez do sucesso do seu próprio ministério. Sua preocupação não era atrair grandes multidões, mas ansiava desesperadamente por Cristo como a realidade de sua pregação. Por isso, suas mensagens eram frutos de sua visão e intensas experiências pessoais. Ele falava daquilo que vivenciava, e sofria dores de parto para que aquela visão se concretizasse primeiramente em sua própria vida. Pelo menos quatro linhas gerais podem ser percebidas em suas mensagens: (a) o grandioso Cristo celestial; (b) O propósito de Deus focado em ganhar uma expressão corporativa para Seu Filho; (c) a Igreja celestial – a base da operação de Deus na terra e (d) a Cruz – o único meio usado pelo Espírito para tornar as riquezas de Cristo parte da nossa experiência. Sparks também acreditava que os princípios espirituais precisavam ser estabelecidos por meio da experiência e do conflito, quando finalmente seriam interiorizados no crente, tornando-se parte de sua vida. Sparks desejava que aquilo que recebeu gratuitamente fosse também assim repartido, e não vendido com fins lucrativos, contanto que suas mensagens fossem reproduzidas palavra por palavra. Seu anseio era que aquilo que o Senhor havia lhe concedido pudesse servir de alimento e edificação para os seus irmãos. Suas mensagens são publicadas ainda hoje no site www.austin-sparks.net e seus livros são distribuídos gratuitamente pela Emmanuel Church.
“Nenhum homem é infalível e ninguém ainda ”obteve a perfeição”. Muitos homens piedosos precisaram se ajustar, seguindo um senso de necessidade, após Deus lhes haver concedido mais luz.” (De uma Carta do Editor publicada pela primeira vez na revista “A Witness and A Testimony“, julho-agosto de 1946).