T. Austin-Sparks (1888-1971)
“Preparou-lhes Uzias, para todo o exército, escudos, lanças, capacetes, couraças e arcos e até fundas para atirar pedras. Fabricou em Jerusalém máquinas, de invenção de homens peritos, destinadas para as torres e cantos das muralhas, para atirarem flechas e grandes pedras; divulgou-se a sua fama até muito longe, porque foi maravilhosamente ajudado, até que se tornou forte” (2 Crônicas 26:14,15).
“Pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes” (1 Coríntios 1:27).
“A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza” (2 Coríntios 12:9).
“Quanto ao mais, sede fortalecidos no Senhor e na força do seu poder” (Efésios 6:10).
“Para que, segundo a riqueza da sua glória, vos conceda que sejais fortalecidos com poder, mediante o seu Espírito no homem interior” (Efésios 3:16).
“Sendo fortalecidos com todo o poder, segundo a força da sua glória”(Colossenses 1:11).
Ao lermos as passagens referidas acima, podemos perceber a grande importância e valor da fraqueza e da dependência. Pode parecer até uma contradição ler que “Deus escolheu as coisas fracas” [1Co 1:27] e então, logo a seguir, que devemos ser “fortalecidos… na força do seu poder” [Ef 6:10]. É possível colocar diversos textos das Escrituras lado a lado, de sorte que pareçam contraditórios, mas a Palavra de Deus nunca se contradiz. Isso deve ser deixado bem claro para cada um de nós, de uma vez por todas. O sentido dessas aparentes contradições deve ser melhor compreendido, até que as dúvidas sejam devidamente reconciliadas.
Esses textos formam aparentes paradoxos, que se tornam ainda mais agudos quando afirmamos que fraqueza e força são duas coisas corretas, e ambas devem coexistir ao mesmo tempo, na mesma pessoa. Fraco, mas tão fraco ao ponto de nada poder fazer! Forte, e fortalecido com um poder tão maravilhoso que tudo se torna possível! Uma consciência, experiência e realidade simultâneas, sem a menor sombra de contradição. Podemos nos perguntar: como isso é possível? É simplesmente confuso! Vamos então tentar deixar mais claro.
Quando discorremos um pouco sobre a fraqueza, a importância da dependência e consciência da nossa impotência, imediatamente somos lembrados de textos das Escrituras que se referem à necessidade de sermos fortes, com o intento de desfazer esse argumento, destruindo e minando nossa afirmação, como se essas duas coisas não pudessem coexistir em perfeita harmonia.
As pessoas têm uma maneira estranha de se tornar mentalmente aprisionadas às Escrituras nessas aparentes contradições. Por isso, se torna necessário e é de grande ajuda para nós compreender o sentido desse paradoxo.
Deus Esvazia para Encher
A necessidade de fraqueza é algo perfeitamente claro. Através das Escrituras, no Antigo e no Novo Testamentos, fica muito explícito que Deus começa tudo destruindo os homens, conduzindo-os primeiramente até um ponto de fraqueza e de vazio. Ele realmente esvazia Seus vasos antes de enchê-los. Ele quebra antes de edificar. O Senhor retira a força antes que Ele aperfeiçoe a Sua força no mesmo objeto. Não sobra nenhuma dúvida a respeito disto, quando lemos a Palavra de Deus e estudamos a história de qualquer instrumento que serviu ao Seu propósito de maneira vital. A necessidade de fraqueza e de uma dependência consciente do Senhor é muito real quando entramos na esfera dos valores Divinos, e isso é de grande importância para nós e para o Senhor.
A Razão da Necessidade do Enfraquecimento
Onde, então, surgiu essa necessidade? Ela tem sua origem no desejo da nossa natureza por poder e força. Universalmente, o homem ambiciona por ser forte, e diríamos que até se revolta contra a fraqueza, ansiando pelo poder. Esse desejo está em nós por natureza. Seria difícil encontrar uma pessoa, por mais insignificante que ela possa parecer, que se deleite em estar em desvantagem, tenha prazer em ser aviltado e goste de permanecer em uma condição de inferioridade diante dos demais.
Não, isso não é parte da natureza humana, e muitas vezes até mesmo uma humildade simulada é apenas uma maneira sutil de tentar chamar a atenção para si, ganhando, dessa forma, certa vantagem. Ouvimos pessoas dizerem, jactanciosamente, que são as pessoas mais humildes do mundo, e isso é apenas uma manifestação orgulhosa do ego sob o pretexto de uma falsa humildade.
Nunca seremos capazes de rastrear todas as tão variadas manifestações do nosso ego. De uma forma ou de outra, essa vida do ego se expressa na busca por força, visando o poder, influência e sua sustentação e permanência de cabeça erguida. Essa é a natureza humana.
Uma Coisa Certa, Feita da Maneira Errada
Esse é o ponto: que na natureza humana, hoje denominada por humanidade caída, toda essa questão de poder foi subvertida, tornando-se em algo pessoal. Consequentemente, tudo se tornou em algo maligno. Deus nunca desejou que o homem fosse um verme indigno, rastejando sobre a terra, mas desejava que ele fosse nobre, magnífico, a maior obra de Suas mãos. O homem, segundo o propósito original de Deus, deveria ser dotado de grande dignidade, possuir maravilhoso poder, força e influência. Mas Deus planejou tudo isso para Sua satisfação, glória e honra.
Tudo isso se subverteu, voltando-se para os interesses pessoais, o que podemos ver claramente na natureza humana em nossos dias. Somente quando o princípio do ego for quebrado, poderemos aceitar de bom grado uma posição de ser nada, por causa do Senhor.
A Busca de Satanás pelo Poder
Aqui reside o segredo da necessidade da fraqueza. O homem, em sua natureza, tem dentro de si uma força subvertida, ou uma busca por força. É nesse ponto que reside o supremo objetivo Satânico. O único objetivo dominante de Satanás é o poder. Ele plantou essa ideia e sugestão dentro do homem, da busca pela força, pelo domínio, de ser igual a Deus. Isso equivale a dizer que a sugestão de Satanás é que o homem tenha poder em si mesmo, independente de Deus.
Dessa forma, o homem e Satanás entraram nessa terrível fraternidade na busca pelo poder, com vistas a objetivos pessoais. A partir daí, tenhamos nós consciência disso ou não, nossa natureza humana pende para esse objetivo.
Até mesmo os santos mais consagrados descobrem essa tendência, pois quando Deus os abençoa maravilhosamente, podem perceber esse inimigo brotando na velha natureza. Se fosse concedido espaço, certamente o velho homem tomaria posse da bênção de Deus, usando-a para sua própria glória.
“Porque foi maravilhosamente ajudado, até que se tornou forte” (2Cr 26:15). Uzias se apossou das bênçãos maravilhosas de Deus como um meio de poder, colocando a si mesmo em evidência, chegando aos territórios a ele proibidos. Esse inimigo maligno está no nosso interior, se manifestando de tempos em tempos, até mesmo nos santos maravilhosamente ajudados e abençoados por Deus, se tornando em sua mais completa ruína. É o velho inimigo surgindo novamente. Esse é o objetivo supremo de Satanás, implantado na própria constituição do homem caído e manifestando-se sempre naquele terreno do poder pessoal, da força usada para nós mesmos, visando interesses pessoais.
Isso é tão profundo, sutil e secreto, que nunca conseguiremos chegar à sua raiz, nem nos livraremos totalmente disso. Nunca seremos capazes tomar esta questão, analisá-la e compreendê-la totalmente. As formas em que o desejo pela força se manifestam são tão profundamente sutis, que podem até ser vistas como coisas boas e justas, ou podem até mesmo passar completamente desapercebidas diante dos nossos olhos. Mas essa é a causa oculta da ofensa, destruição, ruína e limitação do povo do Senhor, mesmo quando não estão conscientes disso. Que tremendo antagonismo contra os interesses do Senhor é encontrado em nossa natureza, nessa linha do desejo por força.
Continue no próximo post.
Baseado no texto “The Value of Weakness” (O Valor da Fraqueza) de T.Austin-Sparks. Esse artigo foi publicado pela primeira vez em 1935 na revista “The Witness and the Testimony“