Fome em Canaã?

Print Friendly, PDF & Email

“Fome em Canaã?” é um artigo baseado em meditações nos versículos iniciais do livro de Rute. Tomamos por referência os livros: “Estudos sobre o livro de Rute” de H. L. Heijkoop e “União com Cristo: Um vislumbre do livro de Rute” de Christian Chen.

***

“Nos dias em que julgavam os juízes, houve fome na terra…” (Rute 1:1).

“Ouve, pois, ó Israel, e atenta em os cumprires, para que bem te suceda, e muito te multipliques na terra que mana leite e mel, como te disse o SENHOR, Deus de teus pais” (Dt 3:6).

“Terra em que comerás o pão sem escassez, e nada te faltará nela; terra cujas pedras são ferro e de cujos montes cavarás o cobre. Comerás, e te fartarás, e louvarás o SENHOR, teu Deus, pela boa terra que te deu” (Dt 8:9,10).

“Mas a terra que passais a possuir é terra de montes e de vales; da chuva dos céus beberá as águas; terra de que cuida o SENHOR, vosso Deus; os olhos do SENHOR, vosso Deus, estão sobre ela continuamente, desde o princípio até ao fim do ano” (Dt 11:11,12).

***

Os textos acima mostram a promessa de benção que Deus fez à terra de onde Elimeleque saiu. Nela não faltaria alimento, mas, pelo contrário, seria uma “terra em que comerás o pão sem escassez, e nada te faltará nela”.

Mas então por que em Rute 1:1 lemos “houve fome na terra”?  Será que Deus havia voltado atrás em Sua palavra? Como conciliar isso? Ele disse que Seus olhos estariam continuamente sobre a terra de Canaã. Como poderia faltar pão ali?

Guardai-vos não suceda que o vosso coração se engane, e vos desvieis, e sirvais a outros deuses, e vos prostreis perante eles; que a ira do Senhor se acenda contra vós outros, e feche ele os céus, e não haja chuva, e a terra não dê a sua messe, e cedo sejais eliminados da boa terra que o Senhor vos dá” (Dt 11:16, 17).

Deus havia advertido o povo que se eles se afastassem do Senhor, servindo a outros deuses, aquela terra deixaria de ter alimento. Então, a bênção de Deus sobre a terra era condicional.

Conhecemos a história daquele povo, e sabemos que foi exatamente isso que lhes aconteceu – Eles se afastaram do Senhor e seguiram aos outros deuses.

A Palavra de Deus não voltou atrás, pelo contrário, foi cumprida cabalmente. Não seria necessário haver fome na terra, mas isso acabou ocorrendo devido à infidelidade do povo. A fome era decorrente disso. 

A rapidez dessa decadência é um fato a ser destacado! A história do livro de Rute se passou no contexto do livro de Juízes. Ali podemos entender melhor quão rápida foi a decadência do povo de Deus, e em que contexto essa fome apresentada no livro de Rute se insere:

“Naqueles dias, não havia rei em Israel; cada um fazia o que achava mais reto” (Jz 21:25).

Esse era o contexto tanto do livro de Juízes, como o de Rute. Não havia rei em Israel. O povo havia se desviado do verdadeiro Rei e “cada um fazia o que achava mais reto”.

Para entendermos melhor o que isso significava, vamos ver um incidente registrado em Juízes:

“Havia um homem da região montanhosa de Efraim cujo nome era Mica, o qual disse a sua mãe: Os mil e cem siclos de prata que te foram tirados, por cuja causa deitavas maldições e de que também me falaste, eis que esse dinheiro está comigo; eu o tomei. Então, lhe disse a mãe: Bendito do SENHOR seja meu filho! Assim, restituiu os mil e cem siclos de prata a sua mãe, que disse: De minha mão dedico este dinheiro ao SENHOR para meu filho, para fazer uma imagem de escultura e uma de fundição, de sorte que, agora, eu to devolvo. Porém ele restituiu o dinheiro a sua mãe, que tomou duzentos siclos de prata e os deu ao ourives, o qual fez deles uma imagem de escultura e uma de fundição; e a imagem esteve em casa de Mica. E, assim, este homem, Mica, veio a ter uma casa de deuses; fez uma estola sacerdotal e ídolos do lar e consagrou a um de seus filhos, para que lhe fosse por sacerdote. Naqueles dias, não havia rei em Israel; cada qual fazia o que achava mais reto” (Jz 17:1-12).

Ao receber a confissão do filho de que ele lhe havia roubado, a mãe lhe responde: “bendito do Senhor seja meu filho!… eu to devolvo”. No meio dessa total falta de correção por parte da mãe para com seu filho, ainda vemos um incentivo à idolatria.

Aqui vemos um pouco do caráter de Mica. Mas, quem era de fato ele? Qual sua origem? Vamos seguir um pouco mais nessa história:

“Estando eles [os filhos de Dã] junto da casa de Mica, reconheceram a voz do moço, do levita; chegaram-se para lá e lhe disseram: Quem te trouxe para aqui? Que fazes aqui? E que é que tens aqui? Ele respondeu: Assim e assim me fez Mica; pois me assalariou, e eu lhe sirvo de sacerdote” (Jz 18:4).

Mica, não só havia construído “uma casa de deuses”, como havia assalariado um levita para ser sacerdote nessa casa.

Quem era esse levita que havia deixado se assalariar para ser sacerdote numa casa de deuses? Se seguirmos um pouco mais no mesmo capítulo de Juízes, encontramos:

“Os filhos de Dã levantaram para si aquela imagem de escultura; e Jônatas, filho de Gérson, o filho de Manassés [Moisés], ele e seus filhos foram sacerdotes da tribo dos danitas até ao dia do cativeiro do povo” (Jz 18:30).

Embora a maioria das nossas traduções dizem “o filho de Manassés”, se voltarmos à Septuaginta, vamos ver que o nome ali não é Manassés, mas sim Moisés.

Esse levita que foi tomado por Mica por seu sacerdote particular, era ninguém menos que o neto de Moisés.

Isso nos leva a perceber a rapidez da decadência do povo na terra de Canaã. Essa era a segunda geração depois de Moisés. Esse é o tempo em que a história de Rute aconteceu.

Essa informação pode ser confirmada em Números 1, que se passa “no segundo ano após a saída dos filhos de Israel do Egito” (Nm 1:1). Ali vemos o Senhor falando à Moisés para levantar o censo de toda a congregação dos filhos de Israel, contando todos os homens “capazes de sair à guerra”.

Esse termo “capazes de sair à guerra” tem uma representação para nós de maturidade. Não se trata de meninos, mas homens capazes de sair à guerra.

Pois bem, nessa contagem desses homens maduros, encontramos Naasom, filho de Aminadabe (Nm 1:7) e, em Rt 4:20 lemos: “Aminadabe gerou Naassom, Naassom gerou a Salmom, Salmom gerou a Boaz”. 

Ou seja, o Naasson que foi contado no segundo ano após a saída do povo do Egito, como sendo capaz de sair à guerra, era o avô de Boaz, personagem do livro de Rute.

Por essas duas histórias, podemos ver que apenas duas gerações após o tempo de Moisés, o povo já estava numa situação de total decadência, seguindo a outros deuses.

Mas graças a Deus, e pela Sua misericórdia, a história pode ser transformada. Em Mateus vemos a continuação dessa genealogia:

“Arão gerou a Aminadabe; Aminadabe, a Naassom; Naassom, a Salmom; Salmom gerou de Raabe a Boaz; este, de Rute, gerou a Obede; e Obede, a Jessé” (Mt 1:4,5).

Raabe era mãe Boaz, e este se casou com Rute. É impressionante ver a ação da graça de Deus. Uma meretriz e uma moabita participando da genealogia de Davi, e consequentemente a genealogia do Senhor Jesus (Mt 1:4,5). Isso é o que a graça faz conosco.

AO SENHOR E À PALAVRA DE SUA GRAÇA

Não podemos deixar de nos lembrar da advertência do apóstolo Paulo aos irmãos de Éfeso, quando, prestes a ir para Roma, onde morreria, disse:

“Eu sei que, depois da minha partida, entre vós penetrarão lobos vorazes, que não pouparão o rebanho. E que, dentre vós mesmos, se levantarão homens falando coisas pervertidas para arrastar os discípulos atrás deles. Portanto, vigiai, lembrando-vos de que, por três anos, noite e dia, não cessei de admoestar, com lágrimas, a cada um. Agora, pois, encomendo-vos ao Senhor e à palavra da sua graça, que tem poder para vos edificar e dar herança entre todos os que são santificados” (At 20:17-32).

Paulo via dois perigos que viria sobre a Igreja em Éfeso. Um externo, os lobos vorazes, que penetrariam no meio do rebanho e não os pouparia. O outro era interno, homens, dentre eles mesmos, se levantariam para arrastar os discípulos atrás deles.

Não é também o que enfrentamos hoje? O inimigo lá fora tentando roubar a posição da Igreja de assentada com Cristo nos lugares celestiais, cumprindo o Seu propósito; também homens, no meio do povo de Deus, trazendo atenção para si, buscando seguidores entre o provo do Senhor.

Mas Paulo dá aos irmãos em Éfeso a arma correta para resistir a essas ameaças: “Encomendo-vos ao Senhor e à palavra da sua graça, que tem poder para vos edifica e dar herança entre os que são santificados”.

Quando Inácio, discípulo e amigo do apóstolo João, estava seguindo de Antioquia para Roma, onde seria martirizado, escreveu sete cartas às igrejas. Assim como Paulo, ele estava severamente preocupado com o futuro da igreja, mas, diferente de Paulo, ele enfatizou a necessidade de que os irmãos se submetessem à um governo humano.

Por mais que Inácio fosse um homem profundamente temente a Deus e amasse o Senhor, ele estabeleceu um princípio que trouxe grande dano à igreja:

Em sua carta aos irmãos de Éfeso, ele disse: “Tomemos cuidado, irmãos, para não nos colocarmos contra o bispo, a fim de que estejamos sujeitos a Deus…, pois é evidente que temos de respeitar o bispo da mesma maneira como respeitamos o próprio Senhor”. Já na epístola aos magnésios, afirma: “Eu exorto a vocês a examinares cuidadosamente para fazer todas as coisas em divina harmonia: seus bispos presidindo como se estivessem no lugar de Deus; seus presbíteros como se estivesse no lugar do conselho de apóstolos; e seus diáconos, na posição mais estimada para mim, estando encarregados do ministério de Jesus Cristo. Daremos um outro exemplo que se encontra na epístola dele à Filadélfia: “Eu clamei enquanto estava no meio de vocês, falei em alta voz: ‘Obedeçam ao bispo, ao presbitério e aos diáconos’. Agora alguns supõem que disse isso prevendo a divisão que aconteceria. Mas Ele é minha testemunha, por amor do qual estou em correntes, que eu nada sabia vindo da parte dos homens, mas o Espírito falou…: ‘Nada façam sem o bispo; mantenham seus corpos como templos de Deus, amem a unidade, fujam das divisões, sejam seguidores de Cristo, como Ele é do Pai’.

Na última citação fica evidente que o respeitável pai desejava acrescentar às suas teorias o peso da inspiração. No entanto, por mais extravagante e inexplicável que seja tal ideia, devemos lhe dar o crédito por acreditar no que dizia. Ninguém pode duvidar que ele era um cristão piedoso e cheio de zelo religiosos, mas estava grandemente enganado nesta e em outras questões. A ideia principal de suas cartas era a total submissão do povo aos seus líderes, em outras palavras, submissão dos leigos ao clero. Indubitavelmente, Inácio ansiava pelo bem-estar da igreja, e temendo os efeitos das “divisões” às quais se referia, é provável que tenha pensado que um governo forte, nas mãos de líderes, seria o melhor meio de preservar a igreja da invasão dos erros” (MILLER, Andrew – A História da Igreja, Vol 1, cap 8, pg 191 e 192, Depósito de Literatura Cristã).

Que grande diferença entre a postura de Inácio e a de Paulo! Vamos recomendar os homens ao Senhor e a Sua palavra ou a outros homens? A decadência é rápida. Logo depois que os apóstolos morreram, as doutrinas estranhas se iniciaram, até mesmo a partir de pessoas sinceras no amor pelo Senhor. 

Paulo dirigiu os irmãos ao Senhor e à Palavra de Sua graça. É muito importante percebermos como a decadência ocorre na história da igreja, para que estejamos atentos (1Co 10:12). A história sempre se repete. 

Tudo que aconteceu na época de Juízes, inclusive o que foi mencionado no apêndice final desse livro, composto pelos capítulos 17 a 21, abrange o período do livro de Rute. 

SEM REI EM ISRAEL

“Naqueles dias não havia rei em Israel, cada um fazia o que achava mais reto” (Jz 18:1, 19:1, 21:15). 

“Há caminho que ao homem parece direito, mas ao cabo dá em caminhos de morte” (Pv 14:12; 16:25). 

“Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo caminho, mas o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de nós todos” (Is 53:6).

Esses versículos retratam a essência do livro de Juízes e o contexto a que se insere o livro de Rute. O povo vivia guiado pelos seu próprio coração. Cada um fazia o que achava mais reto.

No retrato do profeta Isaías, vemos ovelhas desgarradas, cada uma se desviando pelo caminho. 

De fato, o Senhor já tinha algo em mente, mesmo quando o povo pediu um Rei, rejeitando a teocracia, que era o governo Divino, Ele já tinha o Seu Rei. Historicamente, temos o Rei Davi sendo gerado a partir de Rute e Boaz, que veio para estabelecer temporariamente o reino em Israel. 

Mas de fato, como o profeta Isaías bem viu, OUTRO REI seria gerado, e Ele tomaria toda a nossa iniquidade, tornando a nossa perfeita salvação possível. O REI DOS REIS.

A CARNE E A GRAÇA DE DEUS

Rute, era uma Moabita. Ela era banida da congregação do Senhor, conforme a Palavra de Deus:

“Nenhum amonita ou moabita entrará na assembléia do SENHOR; nem ainda a sua décima geração entrará na assembléia do SENHOR, eternamente. Porquanto não foram ao vosso encontro com pão e água, no caminho, quando saíeis do Egito; e porque alugaram contra ti Balaão, filho de Beor, de Petor, da Mesopotâmia, para te amaldiçoar” (Dt 23:3,4).

“Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus” (Rm 8:8).

“Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne, porque são opostos entre si” (Gl 5:17).

Os Moabitas tentaram impedir o propósito do Senhor, quando o povo de Israel estava seguindo para Canaã. É assim que a carne age, além de não nos ajudar em nossa caminhada, ela também tenta nos impedir de entrar no propósito do Senhor. Ela tenta nos fazer morrer de fome antes de entrarmos na terra que o Senhor já nos deu por herança.

A carne é banida eternamente, nunca poderá ter parte nas coisas de Deus. A carne milita contra o Espírito (Gl 5:17). Esse combate só vai acabar quando o Senhor voltar.

Leia mais sobre o livro de Rute aqui.

*** 

Referências:

Estudos sobre o livro de Rute H. L. Heijkoop (Depósito de Literatura Cristã)
União com Cristo: Um vislumbre do livro de RuteChristian Chen (Edições Tesouro Aberto)
A História da Igreja, Vol 1 – Andrew Miller (Depósito de Literatura Cristã)

Post anterior
Introdução ao livro de Rute
Próximo post
A Escolha de Elimeleque

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Preencha esse campo
Preencha esse campo
Digite um endereço de e-mail válido.

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.