Harry Foster
“Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o SENHOR pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus” (Miquéias 6:8).
“Andou Enoque com Deus; e, depois que gerou a Metusalém, viveu trezentos anos; e teve filhos e filhas. Todos os dias de Enoque foram trezentos e sessenta e cinco anos. Andou Enoque com Deus e já não era, porque Deus o tomou para si” (Gênesis 5:22-24).
“Pela fé, Enoque foi trasladado para não ver a morte; não foi achado, porque Deus o trasladara. Pois, antes da sua trasladação, obteve testemunho de haver agradado a Deus” (Hebreus 11:5).
Enoque, Andando no Lar
A primeira menção do Senhor em associação direta com o homem sugere que Ele estava acostumado a andar com Adão no jardim (Gn 3:8). Parece, então, que até a queda Adão andou com Deus. Depois de sua desobediência, entretanto, nunca mais o fez. Isso não significa necessariamente que Deus o abandonou, pois há uma grande diferença entre o ser cuidado por Deus e caminhar com Ele.
Enoque foi o primeiro dos descendentes de Adão a andar com Deus (Gn 5:24). Não estamos sugerindo que seus predecessores listados neste capítulo foram abandonados por Deus, mas Enoque se destaca dos demais pelo fato de ter sido o único nesse período que deliberada e constantemente trouxe prazer a seu Deus, andando em sintonia com Ele. A importância dessa diferença é enfatizada pelo fato de que, ao contrário do restante das pessoas, Enoque não morreu. Ele nunca viu a morte, mas foi levado diretamente para a glória celestial no final de sua caminhada terrena.
Nós, que temos a mesma esperança que Enoque, fazemos bem em buscar uma caminhada mais próxima de Deus. A Bíblia faz referência frequente à “caminhada” de um crente, e talvez a mais desafiadora de todas essas Escrituras seja o lembrete de que, se dissermos que permanecemos em Jesus Cristo, devemos andar “como Ele andou” (1Jo 2:6). Este é realmente um padrão elevado e seria impossível de ser alcançado se não fosse pela seguinte promessa de Deus: “Habitarei e andarei entre eles” (2Co 6:16). Talvez considerar a vida de alguns patriarcas que andavam com Deus durante suas vidas nos ajude a fazer o mesmo. Começaremos então, como a Bíblia faz, com o patriarca Enoque.
Sem dúvida, havia muitas características e atividades em sua vida que eram interessantes, mas pouco nos é dito a respeito. Porém, sabemos uma coisa que diz respeito aos seus assuntos domésticos: que ele andou com Deus em meio a sua própria casa. Não há sugestão de muitos eventos dramáticos em sua história, como aconteceu com Abel e Noé. A Bíblia não lhe confere um status especial, assim como fez com Abraão e Moisés. Aparentemente, ele era apenas um homem de família comum. E ainda assim ele foi diferente. Ele andou com Deus. Além disso, ele o fez em sua própria casa e entre seus próprios filhos. Paulo deixa claro em sua carta a Timóteo que nenhum homem é qualificado para servir Sua igreja se primeiro não aprende a andar com Deus em sua vida doméstica. Mas o lar nunca será de fato o lugar mais fácil para essa caminhada.
Além do mais, o mundo em que Enoque viveu certamente não era um lugar nada simples. Os homens daquela época viveram tamanho conflito com a vontade de Deus, que a única expressão de Enoque registrada se relaciona ao julgamento Divino. Nessa mensagem, registrada em Judas 15, a palavra “ímpio” é repetida não menos que quatro vezes em apenas um versículo. Ele viveu em uma “sociedade permissiva”, assim como nós vivemos nos dias de hoje, mas não capitulou com seus baixos padrões, certificando-se de que em sua casa e entre seus filhos o nome de Deus sempre fosse honrado e Sua vontade respeitada.
A sua família se multiplicou e cresceu. Ainda assim, Enoque continuou se mantendo perto de seu Senhor. Obviamente, é uma característica óbvia do movimento da caminhada que isso só pode ser feito um passo de cada vez. Foi somente no final de seu curso que Enoque foi levantado e levado por Deus. Até então, seguiu seu curso com ações pequenas, deliberadas e repetidas – continuou andando. A vida de fé não consiste em constantes arrebatamentos, mas exige, pelo contrário, um passo firme da parte do homem que, esperando em Deus, é capaz de “caminhar e não se fatigar” (Is 40:31).
O salmista peregrino disse que a Palavra de Deus é uma lâmpada para seus pés, bem como uma luz para seu caminho (Sl 119:105). Não basta ter uma luz geral que indica o caminho; também precisamos ser esclarecidos quanto a cada passo. Isso está incluído no mandamento Divino de andarmos “na luz”. Isso não quer dizer que alguém deva ser governado por tal excesso de cautela, a ponto de isso implicar em tensão, ou até mesmo em paralisia. Caminhar é um dos mais naturais e espontâneos de todos os movimentos adiante. O homem que tentar ser super-espiritual tenderá a transformar numa crise cada passo proposto, e se sentirá impelido a ter uma sessão de oração prolongada antes de fazê-lo. Se Enoque tivesse agido assim, não seria um bom homem de família e certamente não teria sido feliz. “Andemos dignamente, como em pleno dia” (Rm 13:13). Andar com Deus significa estar sempre aberto à Sua Palavra, sempre sensível e receptivo a ela. Para o homem que anda dessa maneira, não pode haver subterfúgios, mente fechada e falta de vontade de sofrer correção.
É interessante que, ao escrever sobre “andar na luz”, João deixe claro que o homem que o faz não é de forma alguma irrepreensível. Pelo contrário, ele precisa e pode ter a certeza de que o sangue de Jesus Cristo continua o purificando de todo pecado (1Jo 1:7). O pecado mais flagrante de todo cristão é o da incredulidade. Enoque é o grande exemplo de um homem que obteve a vitória sobre esse pecado em específico – ele foi o primeiro homem a andar pela fé. Essa é a qualidade enfatizada na referência feita a ele em na epístola aos Hebreus, no capítulo 11, nos versos 5 e 6.
A fé de Enoque é apresentada a nós nos termos mais simples. Antes de tudo, ele acreditava que Deus existia. Pode parecer absurdo sugerir que um homem que estivesse andando com Deus deveria travar uma batalha da fé sobre essa questão, mas é claro que isso representava não somente a existência de Deus, mas também enfatizava Sua presença constante e total suficiência como o Divino EU SOU.
O jovem crente, entusiasmado com a realidade de suas novas experiências, achará difícil acreditar que um homem que esteja andando com Deus há muito tempo possa dar lugar a dúvidas sobre esse assunto. No entanto, sugiro que até o fim daqueles trezentos anos de caminhada espiritual, Enoque precisou exercer uma fé agressiva quanto à proximidade e realidade de seu Companheiro Divino. Quando um cristão desfruta da experiência de subir com asas como águias, consegue correr e não se cansar, ele ainda assim precisará de fé para “caminhar e não se fatigar“. Um homem assim não tem sentimentos interiores, nem encorajamentos exteriores para ajudá-lo, mas precisa ser estável e perseverante com Deus, lembrando-se constantemente de que DEUS É. Não somos informados de nenhuma prova especial encarada por Enoque, mas, como Abraão, Jacó e José tiveram que enfrentar profundas provações, podemos concluir com razão que Enoque também não foi privado delas.
O outro fator mencionado em relação à fé de Enoque é que ele acreditava que Deus recompensaria aqueles que nEle centrassem suas vidas. Isso também pode parecer implícito em um conceito ainda elementar de fé, mas geralmente se torna uma questão de verdadeiro conflito interior.
O fator chave na fé de Enoque foi que ele estava convencido da vinda do Senhor. Ele profetizou e insistiu ousadamente que isso representaria julgamento sobre os inimigos de Deus. Se isso fosse verdade, então certamente também deveria envolver bênção para os amigos de Deus. A fidelidade nem sempre traz uma recompensa imediata; o homem que anda com Deus pode não ser prontamente vindicado; a suprema convicção de alguém assim deve estar na glória final que se encontrará no fim do caminho. Foi assim que aconteceu com Enoque. De uma maneira muito mais elevada, isso também aconteceu com nosso Senhor Jesus. Nossa mais grandiosa prova pode muito bem ser nos mantermos no caminho da vontade de Deus, acreditando que, no final, Ele será nosso grande Galardoador.
Será que essa caminhada nos parece um tanto sombria? Isso não deveria ser verdade pois, como já dissemos, Enoque era um homem feliz. Feliz em sua casa e com seus filhos, porque ele era antes de tudo feliz com seu Deus. Algum tempo antes do fim da caminhada de sua vida, ele percebeu que estava trazendo prazer ao Seu coração. Não pode haver maior alegria para um homem espiritualmente sensível do que ter essa garantia. Podemos ter certeza de que, como Abel, que foi o primeiro homem de fé, Enoque também conheceu a sua aceitação por Deus em virtude do sacrifício de sangue, mas chegou um momento em sua vida que seu senso de perdão e reconciliação foram seguidos por um compromisso sincero com o amor Divino. Enoque não andou com Deus porque precisava, mas porque desejava. Ele “andou em amor”, concedendo a Deus uma total confiança, como se andasse de mãos dadas com Ele.
Deus ama ser considerado confiável. Ele ama ser amado. Quem não ama? A caminhada da fé nunca deve ser uma caminhada de dever, mas sim uma caminhada de feliz comunhão. Certamente foi assim que o Senhor Jesus andou. Ele sabia, de uma maneira que Enoque nunca conseguiu, quão satisfeito o Pai estava com Ele, e assim foi ungido com “óleo de alegria, como a nenhum dos teus companheiros” [Hb 1:9]. Deve ter havido um fator especial de amor na família de Enoque, pois quem sabe que o sorriso de Deus está sobre si, se torna uma pessoa que transborda em amor pelos outros. No entanto, aqui novamente, Enoque é um desafio para nós, pois não é incomum que um cristão radiante e extrovertido, seja um pouco menos do que gracioso nos contatos diários com membros de sua própria família. Não sabemos nada sobre outras obras de Enoque para Deus, mas somos informados de que, entre seus próprios filhos e em seu próprio lar, ele andava com Deus e era agradável a Ele.
Isso nos leva a mais uma característica da caminhada do cristão, a saber, que ele deve andar pelo Espírito. Enoque não viu uma Pessoa. Não está registrado na Palavra que ele teve uma visita celestial, como aconteceu com Abraão. Devemos presumir, então, que foi o Espírito Santo que tornou Deus real para ele. Visto que somos informados de que aqueles que não estão no Espírito não podem agradar a Deus (Rm 8:8) e Enoque O agradou, o patriarca deve ter andado pelo Espírito. A verdade é que não precisamos apenas da orientação do Espírito para andar com Deus, mas também precisamos da força do Espírito para ter capacidade para fazê-lo. Aceitamos prontamente o fato de que precisamos do poder do Espírito para fazer qualquer trabalho especial para Deus e precisamos do Seu poder para testemunhar ao mundo, mas não devemos ignorar o fato de que, para viver nossa vida doméstica comum, só poderemos andar com Deus se formos verdadeiramente governados e capacitados pelo Espírito.
Moisés foi um homem que tinha muita experiência em andar com Deus e foi ele quem transmitiu a mensagem Divina a Aser: “A tua força será como os teus dias” (Dt 33:25 – ARC). No verso anterior, ele descreveu como Aser poderia obter essa força diária: “banhe em azeite o seu pé” [vs 24]. É a parte de Deus nos dar a força do Espírito, mas é a nossa parte fazer apropriação diária dela. O homem que, espiritualmente, “banha em azeite o seu pé” todos os dias, é aquele que encontrará poder suficiente para atender às demandas da caminhada daquele dia com Deus.
O cristão não é meramente convidado a andar pelo Espírito, mas é ordenado a fazê-lo. Pode não ser algo fácil, mas é simples. Foi para esse mesmo propósito que o Espírito foi “convocado” para nos ajudar em nossa caminhada. O fim dessa jornada é a glória, como Enoque descobriu. Nenhum de nós invejará os muitos anos daqueles outros homens listados em Gênesis 5, pois mesmo quem viveu mais tempo, terminou seus dias na morte. Todos nós certamente desejamos ser como Enoque. Embora nossa vida seja mais curta que a de nossos contemporâneos, desde que passemos de caminhar com Deus em nossos próprios lares para um eterno andar de amor com nosso Senhor em Seu Lar, isso será uma recompensa suficiente para nós. A experiência de Enoque visa inspirar-nos com uma esperança como essa. Enoque andou com Deus; Enoque teve a alegria de ser agradável a Deus: Enoque andou e viveu pela fé. Assim também devemos nós andar.
Texto homônimo de Harry Foster, publicado na Revista “Toward The Mark”, Vol 11, no. 2, Mar-Abr de 1982.