A Torrente de Querite

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F. B. Meyer (1847-1929)

“Veio-lhe a palavra do SENHOR, dizendo: Retira-te daqui, vai para o lado oriental e esconde-te junto à torrente de Querite, fronteira ao Jordão. Beberás da torrente; e ordenei aos corvos que ali mesmo te sustentem” (1 Reis 17:2-4).

Estamos estudando a vida de um homem com paixões semelhantes as nossas, alguém que era fraco onde nós também somos, que falhava onde podemos falhar. Mas ele se levantou sozinho, contra seu povo, e conteve a onda de idolatria e pecado premente, tornando uma nação de volta para Deus, e isso ele fez pelo uso de recursos que estão ao alcance de todos nós. Esse é o fascínio dessa história. Se puder ser provado que ele agiu sob o poder de algum segredo que está escondido de nós, pessoas comuns, ou que ele foi lançado em um molde especial, do qual não podemos reivindicar, então deveríamos deixar essa história de lado, pois Elias seria um modelo que não poderia nos inspirar, um ideal impossível, uma visão que nos atrai mas se desfaz no firmamento do passado.

Mas este não é o caso. Esse homem, por quem Deus trilhou os montes, era apenas um verme no melhor dos casos. Esse pilar no templo de Deus era, por natureza, um junco abalado pelo sopro da menor brisa. Esse profeta do fogo, que brilhava como uma tocha, originalmente era apenas um pedaço de linho fumegante. A fé fez dele tudo o que se tornou, e a fé fará o mesmo por nós, se pudermos exercê-la para nos apropriarmos do poder do Deus eterno, como ele o fez. Todo o poder está em Deus, e agradou a Ele armazenar tudo no Salvador ressuscitado, como que em um vasto reservatório. Esse estoque é trazido aos corações humanos pelo Espírito Santo, que é dado de acordo com a medida da nossa receptividade e fé. Oh, pela receptividade de Elias, que pudéssemos estar tão cheios de poder Divino quanto ele, e, portanto, seríamos capazes de fazer façanhas por Deus e pela verdade! Mas, antes que isso aconteça, devemos passar pela mesma educação que ele passou. Você deve ir para Querite e Sarepta antes que possa estar de pé no Carmelo. Até mesmo a fé que você tem deve ser podada, educada e amadurecida, para que ela possa se tornar forte o suficiente para subjugar reinos, praticar justiça e colocar em fuga exércitos de estrangeiros [Hb 11:33,34].

Observe, então, os sucessivos passos dados na educação de Deus concedida aos Seus servos:

1. Os servos de Deus devem aprender a dar um passo de cada vez.

Esta é uma lição elementar, mas difícil de aprender. Sem dúvida, Elias descobriu isso. Antes de deixar Tisbe e ir para Samaria, para entregar a mensagem que sobrecarregava sua alma, ele naturalmente perguntaria o que deveria fazer quando a entregasse. Como ele seria recebido? Qual seria o resultado? Para onde ele deveria ir para escapar da vingança de Jezabel, que não havia se esquivado de matar os profetas menos destemidos que ele? Se tivesse feito essas perguntas a Deus e esperado por uma resposta antes de deixar sua casa nas montanhas, ele nunca teria partido em sua jornada. Nosso Pai nunca trata seus filhos assim. Ele só nos mostra um passo de cada vez e nos convida a crer.

Se olharmos para o Seu rosto e dissermos: “Mas se der esse passo, que certamente me envolverá em dificuldades, o que devo fazer a seguir?” Os céus ficarão mudos, salvo com a mensagem repetida: “Aceite a direção e confie em mim”. Mas o servo de Deus deu o passo ao qual ele foi conduzido,  entregou a mensagem, e então “Veio-lhe a palavra do SENHOR, dizendo: Retira-te daqui, vai para o lado oriental e esconde-te junto à torrente de Querite,” (1Rs 17:2,3). O “então” veio depois. Somente quando o riacho secou,​​ se reduziu à poças, as lagoas secaram e se reduziram à gotas que morreram na areia – somente então a palavra do Senhor veio a ele, dizendo: “Dispõe-te, e vai a Sarepta“(1Rs 17:9). Gosto dessa frase: “a palavra do Senhor lhe veio”. Ele não precisou procurá-la; ela veio até ele. Assim acontecerá com você, e esta palavra pode vir através da Palavra de Deus, através de uma impressão distinta feita em seu coração pelo Espírito Santo, ou através das circunstâncias; mas virá ao seu encontro e lhe dirá o que você deve fazer. “Senhor, que queres que faça? E disse-lhe o Senhor: Levanta-te e entra na cidade, e lá te será dito o que te convém fazer.” (At 9:6 ARC). Pode ser que por muito tempo você tenha tido em sua mente uma forte impressão de dever; mas se segurou, porque não conseguiu ver qual seria a próxima parada. Não hesite mais. Siga adiante para o que parece ser uma neblina impalpável e você encontrará uma laje extremamente estável sob seus pés. Toda vez que você lançar seu pé adiante, descobrirá que Deus preparou um degrau, e outro, e outro; cada um surgindo à medida você chega até Ele.

O pão é diário. O maná é dado todas as manhãs. A força será de acordo com a necessidade do momento. Deus não dá todas as instruções de uma vez, para que não nos confundamos. Ele nos diz tanto quanto podemos nos lembrar e fazer. Então devemos olhar para Ele em busca de mais. Assim aprendemos, por etapas fáceis, os hábitos sublimes de obediência e confiança.

2. Os servos de Deus devem aprender o valor da vida oculta.

Retira-te daqui, vai para o lado oriental e esconde-te junto à torrente de Querite, fronteira ao Jordão” (1Rs 17:3). O homem que ocupará um lugar elevado diante de seus companheiros deve ocupar um lugar baixo diante do seu Deus. Não há melhor maneira de derrubar um homem, do que subitamente tirá-lo de uma esfera na qual ele estava começando a se considerar essencial, ensinando-lhe que ele não é de todo necessário ao plano de Deus, obrigando-o a considerar, no vale de alguma Querite, quais são seus motivos, e quão insignificante é sua força.

Assim o Mestre lidou com Seus apóstolos. Quando, numa ocasião, eles voltaram para Ele cheios de si mesmos e impactados com o sucesso, Ele calmamente disse: “Vinde repousar um pouco, à parte, num lugar deserto“. Somos fortes demais, muito cheios de nós mesmos, para que Deus nos use. Nós imaginamos, em vão, que somos de suprema importância e que Deus não pode nos dispensar. Quão urgentemente precisamos que Deus enterre nosso egocentrismo na escuridão de um Querite ou de um túmulo, de modo a escondê-lo e mantê-lo no lugar de morte. Não devemos nos surpreender, então, se às vezes nosso Pai disser: “Ai, criança, você já teve o bastante de correria, publicidade e excitação; vá e esconda-se no riacho – esconda-se no Querite onde as multidões desapareceram”. Feliz é aquele que pode responder: “Esta é a Tua vontade, então também é a minha, fujo para em Ti me esconder. Assista eu no Teu tabernáculo para sempre; no esconderijo das Tuas asas, eu me abrigo”.

Toda alma santa, que venha a exercer grande poder diante dos homens, deve conquistá-lo em algum Querite oculto. Um triunfo no Carmelo sempre pressupõe um Querite; e um Querite sempre conduz à um Carmelo. Não podemos dar, a menos que tenhamos previamente recebido. Não podemos exorcizar os demônios, a menos que tenhamos primeiro entrado em nossos quartos e fechado nossas portas, passado horas desenvolvendo um relacionamento arrebatador com Deus. A aquisição do poder espiritual é impossível, a menos que nos escondamos dos homens e de nós mesmos em algum desfiladeiro profundo, onde possamos absorver o poder do Deus eterno. Como a vegetação, que através das longas eras absorveu as qualidades de luz do sol, as devolve através da queima do carvão. O bispo Andrewes tinha seu Querite, no qual passava cinco horas todos os dias em oração e devoção. John Welsh, que achava o dia mal aproveitado, quando não tinha gasto entre oito a dez horas de comunhão no quarto, possuía seu lugar secreto. David Brainard o tinha nos bosques da América do Norte, que eram a cena favorita das suas devoções. Christmas Evans tinha sua intimidade com o Pai em suas longas e solitárias viagens entre as colinas do País de Gales. Fletcher de Madeley, que muitas vezes deixava sua sala de aula e seguia para seu quarto secreto, passando horas de joelhos com seus alunos, implorando pela plenitude do Espírito, até que eles não pudessem se ajoelhar mais, tinha seu Querite. Se passarmos novamente para os tempos antigos, temos Patmos, a reclusão das prisões romanas, o deserto da Arábia, as colinas e vales da Palestina, que sempre serão memoráveis ​​como os Querites daquelas pessoas que ajudaram a dar forma ao nosso mundo moderno.

Nosso Senhor encontrou o seu Querite em Nazaré, no deserto da Judéia, entre as oliveiras de Betânia e nas regiões solitárias de Gadara. Nenhum de nós pode dispensar algum Querite, onde os sons da labuta terrena e as vozes humanas são trocadas pelo murmúrio das águas da quietude que são alimentadas do trono, e onde podemos absorver o poder de uma vida escondida em Cristo, pelo poder do Espírito Santo. Às vezes, um espírito humano, concentrado em sua busca, pode até encontrar seu Querite em meio à multidão. Para tal, Deus é uma morada suficiente, e o lugar secreto do Altíssimo é o seu lugar mais sagrado.

3. Os Servos de Deus precisam aprender a confiar plenamente em Deus.

Inicialmente, temos uma obediência tímida ao comando que parece envolver impossibilidades manifestas; mas quando descobrimos que Deus é ainda melhor que a Sua palavra, nossa fé cresce extraordinariamente e avançamos para novas realizações na fé e serviço. É assim que Deus treina Suas jovens águias para voar. Finalmente, nada é impossível. Esta é a chave para a experiência de Elias. Que estranho ser mandado para um riacho, que naturalmente seria tão sujeito à seca quanto qualquer outro! Quão contrário à natureza supor que os corvos, que se alimentam de carniça, encontrariam a comida para que um homem pudesse comer; ou que, depois de encontrá-la, a trariam regularmente de manhã e à noite para ele!

Quão improvável, também, é que ele pudesse permanecer a salvo da busca dos assassinos de Jezabel em qualquer lugar dentro dos limites de Israel! Mas o mandamento de Deus era claro e inconfundível. Não lhe restou alternativa senão obedecer. “Foi, pois, e fez segundo a palavra do SENHOR” (1Rs 17:5). Uma noite, como podemos imaginar, Elias alcançou o desfiladeiro estreito, abaixo do qual o riacho delimitava balbucios musicais em direção ao Jordão. De cada lado, as gigantescas falésias elevavam-se, com a visão de um pequeno pedaço de céu azul. Os galhos entrelaçados das árvores faziam um dossel natural no horário mais quente do dia. Ao longo de todo o curso do riacho, o musgo criaria um tapete de tonalidade mais rica e mais macia do que o encontrado nos palácios dos reis. E, além disso, vieram os corvos: “Os corvos lhe traziam pela manhã pão e carne, como também pão e carne ao anoitecer” (1Rs 17:6). Que lição foi essa do poder de Deus para prover para o Seu filho! Em dias posteriores, Elias recorreu a isso como se tivesse marcado uma nova época em sua vida. “Nunca mais poderei duvidar de Deus novamente. Sou grato por Ele ter me desligado de todos os outros suprimentos e ter me trazido de volta para Si. Tenho certeza que Ele nunca falhará, quaisquer que sejam as circunstâncias de dificuldade ou julgamento através das quais Ele possa me chamar a passar”.

Há uma forte ênfase na palavra: “ordenei aos corvos que ALI mesmo te sustentem” (1Rs 17:4). Elias poderia ter preferido muitos esconderijos a Querite; mas aquele era o único lugar para o qual os corvos trariam seus suprimentos; e, enquanto ele estivesse lá, Deus estaria comprometido em prover para ele. Nosso pensamento supremo deveria ser: “Estou onde Deus quer que eu esteja?” Se for assim, Deus operará um milagre direto, em vez de permitir que haja escassez. Se o filho mais novo escolheu ir ao país distante por sua própria vontade, ele pode estar em perigo de morrer de fome entre os porcos; mas se o Pai o mandar para lá, ele terá o suficiente e de sobra. Deus não envia um soldado para a guerra para ficar por sua própria conta. O maná sempre acompanha a coluna de nuvem. Se fizermos a Sua vontade na terra como no céu, Ele nos dará pão diário. “Buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6:33). Não vamos discutir a probabilidade dessa história ser ou não verdadeira. É o suficiente que esteja escrita aqui. A presença do sobrenatural não apresenta dificuldades para aqueles que podem dizer “Pai Nosso”, e que acreditam na ressurreição do nosso Senhor Jesus. Mas se a corroboração fosse necessária, ela poderia ser multiplicada em cem vezes, a partir da experiência das pessoas vivas, que tiveram suas necessidades supridas de maneiras tão maravilhosas quanto a vinda dos corvos foi para o solitário profeta.

Um garotinho, depois de ler sobre este incidente com sua mãe viúva numa noite de inverno, sentado em uma sala sem lareira, ao lado de uma mesa vazia, perguntou se poderia abrir a porta para que os corvos de Deus entrassem, pois ele estava certo de que eles podiam estar a caminho. O burgomestre daquela cidade alemã, passando por ali, foi atraído pela visão da porta aberta e entrou, indagando a causa. Quando ele descobriu a razão, disse: “Eu serei o corvo de Deus”, e aliviou a necessidade deles naquele momento e também depois. Ah, leitor, Deus tem uma infinita fertilidade de recursos; e se tu estiveres fazendo a obra do Senhor onde Ele desejou, Ele suprirá tua necessidade, ainda que os céus desabem. Apenas confie nEle!

4. Os Servos de Deus são frequentemente chamados à se sentar ao lado de riachos prestes a se secar.

Mas, passados dias, a torrente secou” (1Rs 17:7). Nossa fantasia mais louca não pode perceber adequadamente a condição em que a Terra da Promessa foi reduzida nos primeiros meses de seca. Os pastos das montanhas estavam queimados pela passagem do fogo. As florestas e os bosques estavam chamuscados e silenciosos. Os rios e riachos encolheram atenuados em seus leitos, recuando continuamente e tornando-se cada dia mais rasos e quietos. Não houve chuva para revitalizar a vegetação ou reabastecer os suprimentos de água. O sol nasceu e se pôs durante meses no céu, em um azul no qual não havia nenhum reflexo de uma única nuvem. Não havia orvalho para polvilhar a terra ressequida e rachada, com suas lágrimas refrescantes. E assim, Querite começou a cantar menos alegremente. Cada dia marcava uma diminuição visível em seu fluxo. Sua voz ficou cada vez mais fraca, até que sua cama se transformou em um curso de pedras, assando no calor escaldante. Secou. O que Elias pensou? Será que ele pensou que Deus havia se esquecido dele? Será que ele começou a fazer planos por si mesmo? Isso teria sido humano; mas acreditamos que ele tenha esperado em silêncio por Deus, acalmando-se como uma criança desmamada, enquanto cantava: “Somente em Deus, ó minha alma, espera silenciosa, porque dele vem a minha esperança”(Sl 62:5).

Muitos de nós tiveram que se sentar à beira de riachos que se secavam. Talvez alguns estejam sentados perto deles neste momento – o arrojado riacho de popularidade, como o de João Batista, está desaparecendo; o riacho seco da saúde, afundando sob uma paralisação rasteira ou um consumo lento; o riacho seco do dinheiro, lentamente diminuindo diante das exigências de doença, dívidas ou extravagâncias alheias; o riacho seco da amizade, que por muito tempo vem diminuindo e ameaça cessar logo. Ah, é difícil sentar ao lado de um riacho seco. É muito mais difícil do que enfrentar os profetas de Baal no Carmelo. Por que Deus os deixa secar? Ele quer nos ensinar a não confiar em Seus dons, mas Nele mesmo. Ele quer nos drenar de nosso ego, assim como drenou os apóstolos em dez dias de espera antes do Pentecostes. Ele quer soltar nossas raízes antes de nos remover para outra esfera de serviço e educação. Ele quer demonstrar o contraste mais forte desse rio com o rio da água do trono que nunca seca. Vamos aprender essas lições e passar de nossos fracos Querites para nosso infalível Salvador. Toda a suficiência reside Nele, e ela não se esgota pelo vôo dos séculos, e também não diminui pela sede de miríades de santos. O rio de Deus está cheio de água. “Quem beber desta água tornará a ter sede; aquele, porém, que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar para a vida eterna” (Jo 4:13-14). “Bebei fartamente, ó amados” (Ct 5:1).

Tradução de extratos do Capítulo 2 do livro “Elijah and the Secret of His Power” (Beside the Drying Brook), de F.B.Meyer.

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