T. Austin-Sparks (1888-1971)
“És tu aquele que estava para vir ou havemos de esperar outro? E Jesus, respondendo, disse-lhes: Ide e anunciai a João o que estais ouvindo e vendo: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres está sendo pregado o evangelho. E bem-aventurado é aquele que não achar em mim motivo de tropeço” (Mateus 11:3-6).
“E, agora, constrangido em meu espírito, vou para Jerusalém, não sabendo o que ali me acontecerá, senão que o Espírito Santo, de cidade em cidade, me assegura que me esperam cadeias e tribulações. Porém em nada considero a vida preciosa para mim mesmo, contanto que complete a minha carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus para testemunhar o evangelho da graça de Deus” (Atos 20:22-24).
Não são poucos os exemplos típicos na Palavra de Deus a respeito de uma paralisia nas pessoas, causada por expectativas desiludidas. Alguns casos podem ser percebidos em expressões fragmentadas, como aquela usada por Jó: “se malograram os meus propósitos” [Jó 17:11]; ou a expressão daqueles dois discípulos na estrada para Emaús: “nós esperávamos” [Lc 24:21], ou ainda nas palavras proferidas por João Batista: “És tu aquele que estava para vir ou havemos de esperar outro?” [Mt 11:3].
Onde lemos a respeito daquele homem que ficou conhecido como o “Rico Insensato”, vemos dois fragmentos como esses na narrativa:
“E disse: Farei isto: destruirei os meus celeiros, reconstruí-los-ei maiores e aí recolherei todo o meu produto e todos os meus bens. Mas Deus lhe disse: Louco, esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para quem será?” [Lc 12:18;20].
Em cada situação dessa houve um chegar ao fim, um beco sem saída, uma paralisia. Cada uma delas foi representada por uma falsa expectativa.
Pelo menos em dois desses casos, o de João Batista e o dos discípulos na estrada de Emaús, podemos dizer que o problema ocorreu devido à uma concepção indevida. Esse tipo de concepção é muito abrangente hoje, sendo a causa de muito engano.
Ela toma dois sentidos: Por um lado, como João Batistas, muitos desistem em desespero, porque as questões nas quais eles creram eram atreladas à uma linha de ação que não se seguiu – resultados que não aconteceram e sucesso que não se materializou. Por outro lado, alguns são iludidos pela falsa concepção de imaginar que o sucesso, crescimento, popularidade e conquista são O ALVO, enquanto, de fato, o valor supremo e espiritual pode estar totalmente ausente.
Nos dois casos, temos pelo menos duas concepções errôneas fundamentais que causaram a paralisia. Uma foi a falha em reconhecer a natureza primária, inicial e essencialmente espiritual da missão e obra de Cristo. Na mente daquelas pessoas, o temporal e terreno se sobrepôs no horizonte, não o espiritual e celestial. Essa foi uma das coisas mais óbvias nos Evangelhos, e foi um dos maiores problemas do Mestre com Seus discípulos. Repetidamente, Ele tentou trazer luz para corrigir essa concepção errônea, pois sabia que isso seria algo que posteriormente eles se ofenderiam, uma dificuldade na qual todos tropeçariam, quando O vissem como uma vítima aparentemente indefesa na Cruz.
Também houve um equívoco total com relação à ordem dos eventos, como Atos 15:14-16 claramente demonstra. Havia uma completa incapacidade de reconhecer o propósito, método, meios, tempo, instrumento, base e paixão Divinas. Isso permitiu que os interesses pessoais, preocupações, ambições e falsas ansiedades tomassem lugar. A frustração desses interesses e a desilusão da Cruz os esmagaram, assim como a todo o seu esquema.
“Nós esperávamos”, disseram eles; mas o pensamento deles era terreno. A “visão celestial” é essencial para vida, certeza, fé e ascendência. Vamos descobrir que antes que possa haver uma manifestação da soberania de Cristo em relação à terra e ao mundo, num senso proporcional, haverá uma intensa gravitação celestial e espiritualidade na vida e obra daqueles que são chamados para compartilhar o trono.
O Conflito Interior de João
Independente do que estivesse passando pela mente de João, quando enviou sua mensagem patética e desesperadora, é quase certo que sua própria condição interior indicava um problema gerado por uma ideia equivocada.
Ele pode ter pensado em algo assim: “Se Ele é realmente Cristo e tudo que foi profetizado a respeito Dele é verdade – tudo que é dito sobre libertar os prisioneiros e oprimidos – por que tendo eu tal relacionamento com Ele, e tendo-O servido como servi, deveria ser deixado nessa masmorra? Há relatos de milagres e obras poderosas. Por que me resta sofrer assim?”
Esse problema chega bem próximo ao coração de muitos do povo do Senhor. Sabemos da parte do próprio Mestre, que Ele estava longe de ignorar ou esquecer de João. No caso de João, é certo que, não foi devido ao pecado, nem por esquecimento Divino que ele foi deixado em sua tribulação sem livramento. A razão será encontrada em outro lugar.
Seria bom ouvir o ponto de vista de outra pessoa, com uma expectativa diferente, e sem a mesma expressão de desespero: “o Espírito Santo, de cidade em cidade, me assegura que me esperam cadeias e tribulações” [At 20:23]. Sim, o apóstolo Paulo tinha muito a dizer sobre a fecundidade espiritual de suas cadeias.
“Para que me seja dada, no abrir da minha boca, a palavra, para, com intrepidez, fazer conhecido o mistério do evangelho, pelo qual sou embaixador em cadeias” [Ef 6:19,20].
“De maneira que as minhas cadeias, em Cristo, se tornaram conhecidas de toda a guarda pretoriana e de todos os demais” [Fp 1:13].
“E a maioria dos irmãos, estimulados no Senhor por minhas algemas, ousam falar com mais desassombro a palavra de Deus” [Fp 1:14].
“Que gerei entre algemas” [Fm 1:10].
Pode parecer injusto fazer uma comparação entre esses dois homens, mas apenas faço isso porque ambos estiveram em situações similares. Não podemos afirmar que Paulo também não passou pelas mesmas tentações e não se sentiu como João.
Uma Esfera de Serviço mais Ampla
Os fatos indicam que, frequentemente, existe uma esfera de serviço mais ampla, obtida por meio de um encurtamento. Percebemos a manifestação de uma vida mais plena por meio de uma morte ainda mais profunda, e um maior ganho através de uma perda mais aguda.
Precisamos olhar para o impacto da operação de Deus em nós na esfera que o olho humano não pode ver. O Mestre disse que João foi o maior dos profetas; e ele, que não foi menor do que eles, precisou entregar sua vida e sofrer até a morte pelo seu testemunho. Aos olhos de Deus, evidentemente, há uma maior virtude nos sofrimentos de Seus servos que tem grande importância para Ele, do que em uma efêmera glória que pode ser dada a Ele por libertá-los.
Existe uma bem-aventurança peculiar, referida pelo Senhor em Sua resposta a João, que pertence àqueles que, sob severas provas, “não se escandalizam Nele” [Mt 11:6]. De uma maneira estranha, João estava relacionado à Cruz e ao “Cordeiro de Deus”, e assim ele foi trazido à esfera da “ofensa da Cruz”.
O que esperamos em nosso relacionamento com “o testemunho de Jesus”?
Você já imaginou que os profundos propósitos de Deus somente podem ser realizados quando Ele tira de nossa carne tudo o que ela anseia em seu desejo por sobrevivência? Sua obra em nós, que assume a sua forma mais elevada pela fé e a obediência, necessita de Seu ocultamento, aceitando Ele o risco de até mesmo ser considerado infiel.
Não há dúvida de que a maioria daqueles que foram chamados em algumas das mais vitais expressões do “propósito eterno” foram treinados na escola da aparente contradição, adiamento e trevas Divinas. Paulo escreveu aos santos de Tessalônica que “ninguém se inquiete com estas tribulações. Porque… estamos designados para isto” [1 Ts 3:3].
Jó, que clamou “se malograram os meus propósitos”, aprendeu que isso não importava muito, visto que os grandiosos propósitos de Deus permaneciam firmes. O triunfo ou paralisia no dia da provação depende de sabermos se estamos em “Seu propósito” e no Seu caminho de realização. Jó encontrou forças ao reconhecer que: “ele cumprirá o que está ordenado a meu respeito e muitas coisas como estas ainda tem consigo” [Jó 23:14], mesmo quando essas coisas eram bem diferentes de suas próprias expectativas.
Um relacionamento verdadeiro e correto com o Senhor é a base sobre a qual há absoluta confiança, segurança e esperança, mesmo quando nossos propósitos e expectativas são despedaçados. Não foi assim no caso do “rico insensato”. “Ele disse…” – Ele tinha seus propósitos não relacionados à Deus. “Mas Deus disse…” – esse foi o fim de todo o propósito.
Se tivermos a vida de Deus em nós, poderemos sobreviver a qualquer coisa. O Senhor não está lá fora para, caprichosamente, frustrar nossas esperanças ou desapontar nossas expectativas, mas Ele deseja mudá-las para as Suas ou satisfazê-las numa esfera cada vez mais elevada.
A Forma Mais Amarga de Desapontamento
Muitas coisas inesperadas e bem contrárias às nossas expectativas podem acontecer conosco, tanto nas esferas da experiência espiritual, como do serviço Cristão. Mas uma das formas mais amargas e fatais dessa paralisia surge por meio de expectativas desapontadas relacionadas às pessoas.
Davi disse em sua perturbação: “todo homem é mentiroso” [Sl 116:11]; e muitos outros chegaram perigosamente perto de sentir que não ousavam confiar em ninguém. A experiência de colapso de Davi, e pior, do desapontamento com amigo familiar que foi para a casa de Deus com ele, é a experiência de muitos outros. Líderes de confiança e altamente estimados, homens de Deus nobres e grandemente usados, aqueles que confiamos, admiramos e consideramos como autoridades e conselheiros, santos e profundamente instruídos, de muitas maneiras nos fizeram tremer sob o choque da desilusão. Uma manifestação de mau humor, irritabilidade, ciúme, interesse pessoal, orgulho, respeito às pessoas, suspeita, preocupação por uma posição, prestígio, aprovação, influência por boatos, relatos, críticas, preconceitos, parcialidade, transigência e muitas outras coisas.
Qualquer pessoa que ler isso entenderá o que estou dizendo e será capaz de compreender o agudo sofrimento que traz consigo uma dormência e paralisia ao passarmos por uma experiência como esta, que ataca os sinais vitais da fé, da comunhão e da confiança. Existem muitas pessoas amarguradas e céticas, ácidas e desconfiadas por causa de expectativas decepcionadas, e elas por vezes permitem que essas coisas atinjam sua fé em Deus.
O Antídoto
Mas a primeira coisa a dizer é que o Senhor prescreveu cuidadosamente algo para essa forma de paralisia, tanto para a sua prevenção como para a cura. Ele apontou o antídoto, tanto na Palavra como em ações. Na palavra, quanta dor precisaremos passar até que compreendamos a advertência de Deus de “não colocar a confiança no homem”? Repetidas vezes o perigo e insensatez de tornar o homem como suporte e base de confiança são enfatizados.
No sentido prático, por que o Senhor não impediu o registro desapontador e às vezes vergonhoso do colapso de Seus melhores servos? Se a Bíblia é inspirada por Deus, então devemos assumir que tudo foi intencionado por Deus. É estranho que tão frequentemente extraiamos conforto para nós mesmos desses relatos, mas por outro lado ficamos chocados ao descobrimos “paixões semelhantes” em outras pessoas.
Em sendo gratos como devemos e precisamos por toda a graça de Deus distribuída aos Seus filhos, valorizando toda ajuda recebida deles e estimando-os altamente por seu serviço, devemos compreender, de uma vez por todas, que o Senhor nunca permitirá que sigamos por muito tempo com fundamentos e muletas humanas, mas Ele eventualmente nos libertará dessas coisas. Assim, poderemos ver que somente Ele é nossa Rocha e que nossa educação e crescimento espirituais devem se apoiar e originar sobre o conhecimento pessoal e direto Dele mesmo.
Quanto maior for a utilidade de uma vida para o Senhor, maior será sua experiência de solidão. Ele nos conduz com frequência a lugares onde outros não podem ir, interpretar, compreender e ajudar. Ao contrário, a compreensão geral a respeito da nossa estranha experiência e suas interpretações, serão foco de ainda maiores sofrimentos e angústias para nós.
Mais cedo ou mais tarde estaremos fadados a nos desapontar com o homem. Mas isso poderá nos conduzir a um mais rico e profundo conhecimento de Deus, se não ficarmos amargos e paralisados por essa experiência.
Isso pode também se tornar ocasião de uma grande e saudável desconfiança a respeito de nós mesmos, por um lado, e uma profunda solicitude e simpatia pelo sofrimento do outro. O Mestre, na hora de angústia, “esperou por alguém que tivesse compaixão, mas não houve nenhum” [Sl 69:20 – ARC]. Podemos nos permitir apenas dar um gole nesse cálice, para aprender alguma coisa sobre a ajuda de Deus, que ninguém mais pode conceder.
Tradução do Capítulo 1 do Livro “The Spiritual Clinic” (A Clínica Espiritual), de T. Austin-Sparks, publicado no site www.austin-sparks.net
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Austin Sparks sempre profundo e cheio de luz espiritual. Grato aos amados irmãos por os tão enriquecedores para o corpo de Cristo.