F. B. Meyer (1847-1929)
“Ouvi-me vós, os que procurais a justiça, os que buscais o Senhor; olhai para a rocha de que fostes cortados e para a caverna do poço de que fostes cavados. Olhai para Abraão, vosso pai” (Isaías 51:1,2).
“Estêvão respondeu: Varões irmãos e pais, ouvi. O Deus da glória apareceu a Abraão, nosso pai, quando estava na Mesopotâmia, antes de habitar em Harã, e lhe disse: Sai da tua terra e da tua parentela e vem para a terra que eu te mostrarei” (Atos 7:2,3).
Onde houver fé, existirá uma ligação direta com a Onipotência, um canal para a comunicação com Deus, um fio por meio do qual o Fogo do Céu trafegará. À medida que a fé for usada de acordo com as indicações do Espírito Santo, em obediência à Seus mandamentos, ela crescerá. Ela cresceu em Abraão, e crescerá em nós também (F. B. Meyer).
No alvorecer da história, o primeiro personagem que prende nossa atenção é Abraão, um homem que merece nossa nota exatamente pelo fato de ter sido chamado “Amigo de Deus”. Certamente deve ser muito proveitoso estudar a vida e a inclinação interior desse homem, para que nós também, em menor medida, possamos nos tornar não apenas servos, mas “amigos” – favorecidos confidentes de Deus – dos quais Ele não ocultará Seus segredos e a quem Ele fará conhecida Sua vontade [Gn 18:17].
Essa história remonta a dois mil anos antes do nascimento de Cristo. Abraão vivia na cidade de Ur, que acredita-se ter sido uma das cidades da Caldéia, localizada na proximidade dos rios Eufrates e Tigre, próxima ao mar. Devido a sua localização, era uma cidade rica, que atraía toda sorte de comércio regional em busca da abundância de produção de trigo, tamareiras, maçãs, uvas e outras frutas. Acredita-se que essa região era uma longa faixa verde, que possibilitava o assentamento de uma grande concentração populacional, inclusive de tribos de pastores, que precisavam de extensos pastos para seus rebanhos.
Descendentes de Cam, o povo de Ur era altamente idólatra, identificado com ritos de indulgência e impureza, assim como sempre acontece quando a humanidade se recusa a aceitar o conhecimento de Deus e se entrega aos ditames de seus desejos carnais. Nos tempos de Abraão, a raça parecia estar beirando novamente aqueles crimes horríveis que ocorreram nos tempos de Noé, quando foi necessária a total destruição da humanidade.
Algo precisava ser feito rapidamente para impedir o progresso daquela decadência moral, salvando assim a humanidade. Esse desafio foi assumido por Aquele cujo deleite sempre esteve com os filhos dos homens, e que, em tempos futuros, pôde dizer com ênfase majestosa: “Antes que Abraão existisse, EU SOU” [Jo 8:58]. Ele cumpriu Seu propósito ali, assim como o faz hoje, separando para Si um homem que, estando completamente purificado e preparado, se tornou num instrumento por meio do qual Deus pôde operar em meio à raça humana caída, a chamando de volta para Si e a elevando moralmente.
Quatro séculos havia se passado desde o Dilúvio; e provavelmente nesse tempo ocorreu abundante emigração. A população se multiplicou rapidamente e o mundo estava aberto para escolhas. Vários grupos de homens, pressionados pela fome e amor pela conquista, se espalharam por todo o mundo. Os filhos de Jafé se dirigiram para o norte, para colonizar a Europa e a Ásia, e estabelecer os fundamentos da grande família Indo-Européia. Os filhos de Cam se moveram para o sul, para as planícies férteis da Caldéia, onde, sob a liderança do poderoso Nimrode, construíram cidades de tijolos de argila, edificaram templos, dos quais vemos ruínas até os dias de hoje, e cultivaram as artes da vida civilizada até então desconhecidas por qualquer outro povo. Eles foram proficientes em matemática, astronomia, tecelagem, obras em metais, gravação em pedras preciosas e preservaram suas ideias e pensamentos por meio de escrita em tabuletas de argila.
Em meio a essa colonização Cananita, havia uma família de filhos de Sem. Esse clã, sob a liderança de Tera, se estabeleceu nas ricas pastagens no entorno de Ur. As cidades muradas, artes civilizadas e tráfico mercante traziam pouca atração para eles, que viviam em tendas ou vilas de cabanas construídas de forma elementar. À luz da predição de Noé (Gn 9:26), podemos acreditar que a vida religiosa deles era mais doce e pura do que as dos povos ao seu redor. Mas logo o vírus moral começou seu trabalho de deterioração. A associação próxima da família Semita com as práticas idólatras e abomináveis dos filhos de Cam contaminaram a sua pureza e simplicidade. Josué (Js 24:15) diz claramente que os pais dos filhos de Israel, que habitaram além do Eufrates, serviam outros deuses. Havia traços desse mal na casa de Labão, de quem Raquel roubou ídolos (teraphim), coisa que acendeu a ira de seu pai (Gn 31:19-35).
A tradição diz que Abraão cresceu ali, mas não possuía um caráter comum àquele povo. De acordo com essas histórias, esse jovem oferecia uma oposição total às práticas malignas que eram abundantes ali, não apenas na região, mas também na casa de seu pai. Não existe nada nas Escrituras que confirme isso, mas também não existe nada inconsistente com isso.
Nas ciências naturais, ao observarmos os movimentos peculiares de um planeta, podemos perceber a presença de um outro corpo celestial de um tamanho definido, ainda que esteja oculto de nosso campo de visão. O caráter maduro, a fé e a pronta obediência de Abrão, visíveis logo que sua história chega ao nosso conhecimento, nos convence de que deve ter havido um longo período de provas severas e testes antecedendo tudo aquilo que está escrito no relato bíblico a seu respeito.
Finalmente, O DEUS DA GLÓRIA APARECEU A ABRAÃO. A luz foi crescendo em sua visão e finalmente o sol brilhou em meio as obscuras nuvens. Não sabemos a forma que Jeová tomou para Se revelar. Provavelmente o Filho, que por toda a eternidade tem sido a Palavra de Deus, tenha Se manifestado, como posteriormente aconteceu nos carvalhais de Manre, tomando a forma de um Anjo. O Senhor pode ter falado com Ele da mesma maneira que fez depois com Isaías no meio dos serafins (Is 6).
De qualquer forma, a visão celestial foi acompanhada por um chamado, da mesma forma que acontece com os corações leais por todas as eras, chamando-os a acordarem para o seu verdadeiro destino, e para tomarem lugares na regeneração do mundo: “Ora, disse o SENHOR a Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei” (Gn 12:1).
Se vivermos de acordo com luz que recebemos de Deus, nos será concedida mais luz. Se formos fiéis no pouco, teremos oportunidade de sermos fiéis em muito. Se permanecermos firmes na Caldéia, seremos chamados para tomar um lugar maravilhoso na história do mundo. A escolha de Deus nunca é arbitrária, mas é baseada nos Seus tratos prévios com aqueles que Ele convoca para Sua obra. “Aos que de antemão conheceu, também os predestinou” [Rm 8:29].
É impossível saber quem lerá essas palavras. Homens jovens vivendo entre ímpios plantadores de chá na Índia, ou nas regiões selvagens da Austrália. Marinheiros em um barco ou soldados em um campo de batalha. Cristãos solitários em sociedades mundanas, onde existe tudo aquilo que é propício para enfraquecer a fé, e nada para reforçar a resistência desse bravo espírito hesitante. Vamos todos guardar isso no coração!
Estamos trilhando uma vereda pela qual os homens mais nobres da humanidade nos precederam. Eles, entretanto, em condições muito mais difíceis, especialmente naquele dia em que aquele homem solitário, o “pai de muitas nações”, a percorreu.
Um sintoma de estar nessa vereda é a solidão. “Porque era ele único, quando eu o chamei” (Is 51:2). Foi a solidão que pressionou o coração de Jesus. Mas essa é uma solidão que assegura a companhia do Divino (veja Jo 8:16,29; 16:32). Apesar de nenhum olho aparentemente perceber as dificuldades, protestos e esforços do espírito solitário, ele é observado com simpatia por todo o céu. No presente, ressoará o chamado, como aquele de Abraão ouviu quando era um peregrino, descortinando diante dele o caminho para uma maravilhosa bênção.
Não se desespere pelo futuro do mundo. Saulos estão sendo treinados no seio do Sinédrio. Luteros estão nos claustros da Igreja Papal, Abraaões estão ocultos debaixo das sombras dos grandes templos pagãos. Deus sabe onde encontrá-los. Quando os tempos aparentemente forem os mais escuros, eles irão conduzir avante um exército de peregrinos, tão inumeráveis como as areias do mar, ou como as estrelas que estão no ilimitado espaço sideral.
Extratos do Capítulo 1 do livro “Abraham” de F.B. Meyer (The Hole of the Pit).