“Parábolas da Cruz – 4” é a tradução do capítulo 4 do livro “The Parables of the Cross”, de Isabella Lilias Trotter, publicado em 1890.
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Isabella Lilias Trotter (1853-1928)
“E a favor deles eu me santifico a mim mesmo, para que eles também sejam santificados na verdade” (João 17:19).
“Porque quem sou eu, e quem é o meu povo para que pudéssemos dar voluntariamente estas coisas? Porque tudo vem de ti, e das tuas mãos to damos” (1 Crônicas 29:14).
A morte para as coisas lícitas é o caminho para uma vida de entrega
Leia o capítulo anterior aqui.
Olhe para este botão de ouro, ao começar a aprender sua nova lição. As mãos do cálice se fecham firmemente sobre o botão que envolve as belas pétalas. Na flor jovem, seu aperto se torna mais elástico, reduzindo um pouco durante o dia, mas ainda sustentando seu poder de contração. Esse poder o torna capaz de se fechar novamente durante uma tempestade ou durante a noite. Mas observe a flor central, que atingiu a maturidade. O cálice se abriu completamente – se dobrou para trás, perdendo todo o poder de se fechar novamente. Agora a coroa de ouro está livre para flutuar, quando o tempo de Deus chegar.
[Das tuas mãos to damos -1Cr29:14]
Já aprendemos a lição do botão de ouro? Já tiramos nossas mãos da flor de nossa própria vida? Será que todas as coisas – mesmo os tesouros que Ele santificou – tem sido segurados com leveza, estando prontos para ser entregues, sem luta, quando Ele assim demandar?
Essa nova vitória sobre a morte não será conquistada somente com o relaxamento parcial de nosso domínio sobre esses tesouros, se ainda preservarmos o poder para retomá-los, quando assim desejarmos. Essa vitória é obtida quando o próprio poder de retomar o objeto entregue for absolutamente rendida. Isso ocorre quando nossas mãos, como as pequenas mãos do cálice dos botões de ouro de Deus, forem dobradas para trás em absoluta rendição. A morte significa desprendimento, sem qualquer capacidade de se agarrar ao objeto novamente.
De fato não há nada estranho em Deus aceitar nossas palavras, tirando de nós, por um tempo, tudo aquilo que tornou a nossa vida bonita. Podem ser coisas exteriores – conforto, lazer, cultura, reputação, amizades – que podem se afastar quando nossas mãos se recusarem a se apegar a qualquer coisa que não for a vontade de Deus para nós.
O esvaziamento pode ocorrer na nossa vida interior, quando precisaremos deixar de lado as terras ensolaradas do gozo espiritual, para percorrer sucessivos campos de batalha de tentação, para que cada centímetro do nosso fundamento seja provado. Pode até parecer, por vezes, que não resistiremos às provas – até chegarmos ao ponto em não encontraremos descanso em nenhuma experiência ou lugar no céu ou na terra, somente no próprio Deus. Então, estaremos “devastados, mas em Deus“.
Como as flores, tenha fé para entregar as coisas antigas. Conquiste a bem-aventurança do Senhor, como Ele bem disse: é “bem-aventurado é aquele que não achar em Mim motivo de tropeço” [Lc 7:23]. Essa é a intitulada “bem-aventurança da confiança”. Se apegue a isso, mesmo que tenha que conquistá-la como João Batista, em um momento de desolação. Você declarou que Ele é tudo que deseja. Será que estará pronto para ratificar essas palavras, quando Seu processo de esvaziamento tiver se iniciado? Será que Deus é mesmo suficiente? Você ainda o chamará de “Meu Deus”, assim como Jesus fez, quando nada mais Lhe restava?
Sim, a morte prática com o Senhor para coisas lícitas corresponde à simples entrega do Senhor na cruz, quando Ele entregou tudo, ficando somente com Deus. Isso não será alcançado por meio de luta, mas simplesmente entregando, assim como o corpo se entrega finalmente à morte física, que dele se apodera. Assim o cálice moribundo entrega sua flor. Não nos entregamos à uma lei de ferro, com uma pressão impiedosa, mas nos rendemos nas mãos do Pai. É nessas mãos que nosso espírito se derrama, na medida que nos permitirmos conformar à morte de Jesus.
Tudo isso te parece difícil? Será que alguma alma nesta vida e na porvir recuaria, dizendo: “Prefiro permanecer na primavera – não quero seguir adiante, se isso implica em todo esse sofrimento”?
Para isso temos a voz do Mestre: “Não temas as coisas que tens de sofrer” (Ap 2:10). Você está certo ao se alegrar nos dias de primavera, enquanto Ele permitir que eles durem. Cada estágio do crescimento celestial em nós é amável para Ele. Ele é o Deus das margaridas, dos cordeiros e dos corações alegres das crianças!
Pode ser que nenhum caminho de perda esteja diante de você; existem pessoas cuja trajetória é comparável àquelas regiões onde a primavera e o verão se interpõem. Para elas, os processos de outono são quase que imperceptíveis, quando vão e vêm.
A única coisa que devemos fazer é manter a obediência em espírito; então, estaremos prontos para deixar passar o tempo das flores, se Ele assim demandar, e se o sol de Seu amor estiver estimulando um pouco mais nosso amadurecimento. Você perceberá, então, que tentar manter as flores murchas irá arruinar sua alma. É uma perda retê-las, quando Deus nos diz para ‘entregar’.
[Quem quiser, pois, salvar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho salvá-la-á – Mc 8:35].
Aqui, mais uma vez, a morte se torna no portão da vida. Ela é uma entrada, não apenas uma saída. Representa a liberação de novos poderes, à medida que os antigos tesouros flutuam pelo ar, assim como acontece com as pétalas moribundas.
Não poderemos ter uma consciência da morte, essas palavras, em termos, nos parecem uma contradição. Isso porque se tivéssemos literalmente passado deste mundo para o próximo, não nos sentiríamos como mortos, mas apenas teríamos uma consciência de uma nova vida maravilhosa pulsando dentro de nós. Nossa consciência da morte seria uma questão totalmente negativa – as velhas dores seriam incapazes de nos atingir, e os velhos laços não poderiam mais nos acorrentar. Nossa consciência teria passado para a nova existência, então seríamos independentes da antiga.
Uma independência como essa é a característica do novo fluir da vida de ressurreição que infunde nossas almas, quando aprendemos esta nova lição da morte: ela traz uma grande independência de qualquer coisa terrena para satisfazer nossa alma, é uma liberdade daqueles que não têm nada a perder, por não ter nada a guardar. Podemos ficar sem nada enquanto tivemos Deus. Aleluia!
Mas isso não é tudo. Veja a expressão de entrega desse cálice de rosa selvagem, com o passar do tempo. Ele começa a crescer no sentido de considerar todas as coisas como perda, o vazio mudo desapareceu – ele recebe nova alegria agora, pois ao mesmo tempo que morre, uma nova vida, mais rica, começa a trabalhar em seu coração – tanta morte, tanta vida – porque
“Sempre com a morte entretece
A urdidura e trama do mundo.
As adoráveis pétalas de rosas selvagens que se foram são quase esquecidas nesse processo de “avançar para as coisas que estão adiante”. Então, um vaso de sementes começa a se formar, e é “produzido. . . para dar frutos”.
[Para trás arremesso como refugo, meu antigo eu e seus caminhos, avançando cada vez mais longe, na busca pelas coisas que estão além desses dias limitados pelo tempo].
Sim, ainda há outro estágio a ser desenvolvido em nós depois que a lição da rendição absoluta e inquestionável a Deus for aprendida. Uma vida que foi derramada para Deus deve encontrar sua coroa, sua conclusão, ao ser derramada para o homem; crescendo da rendição com direção ao sacrifício. “Mas também deram-se a si mesmos primeiro ao Senhor, depois a nós” [2Co 8:5].
Voltando novamente para a cruz; se houver algum lugar onde essa nova lição possa ser aprendida, ali estará!
“Nisto conhecemos o amor: que Cristo deu a sua vida por nós; e devemos dar nossa vida pelos irmãos” [1Jo 3:16].
O próprio amor do Calvário deve visitar nossa alma: “mesmo que seja eu oferecido por libação sobre o sacrifício e serviço da vossa fé, alegro-me e, com todos vós, me congratulo” [Fp 2:17], foram as palavras do apóstolo que mergulhou mais profundamente no espírito do Mestre. Ele novamente disse:
“Em nós, opera a morte, mas, em vós, a vida” [2Co 4:12].
“Porém em nada considero a vida preciosa para mim mesmo, contanto que complete a minha carreira e o ministério” [At 2:24].
O morrer será cada vez mais profundo, pois maior e mais plena será a vida que devemos liberar – e não mais será limitada pelo nosso próprio ser, mas terá infinitos poderes de multiplicação em outras almas. A morte deve atingir as próprias fontes de nossa natureza, para libertá-la.
Não é isso ou aquilo que deve ser entregue nesse momento: devemos entregar nossa própria vida de forma cega, impotente e despreocupada. A morte deve vir sobre tudo o que impediria a ação de Deus através de nós – todos os interesses, os impulsos, as energias que “nasceram na carne” – tudo o que é meramente humano e separado do Seu Espírito.
Somente assim a Vida de Jesus, em Sua intensidade de amor aos pecadores, terá um caminho livre através de nossas almas.
Leia o último capítulo aqui.
Isabella Lilias Trotter (1853-1928) era uma amante da beleza e de Deus, e isso foi demonstrado em sua vida como artista, autora e missionária. Nascida em 1853 em uma família rica de Londres, seu talento foi notado pelo famoso crítico de arte John Ruskin. No entanto, em vez de seguir uma carreira artística, sentiu-se comissionada para ir à Argélia como missionária. Após ter sido rejeitada por uma sociedade missionária, seguiu para aquele país de forma independente, junto com outras duas mulheres solteiras. Ali viveu até sua morte, em 1928. A mensagem do livro “The Parables of the Cross” é simples e, ainda assim, de grande profundidade espiritual. Todas as imagens anexadas aos posts são de sua autoria. Mas a grande contribuição de Lilias Trotter não se resumiu em fazer belas ilustrações, mas principalmente pela capacidade de ilustrar verdades espirituais profundas que lhe eram percebidas a partir da natureza e da vida ao seu redor.
Mais informações sobre sua vida podem ser lidas na Wikipedia e em outros sítios na Internet, também em diversos livros escritos sobre sua vida.