T. Austin-Sparks (1888-1971)
“Pelo mar foi o teu caminho; as tuas veredas, pelas grandes águas; e não se descobrem os teus vestígios. O teu povo, tu o conduziste, como rebanho, pelas mãos de Moisés e de Arão” (Salmo 77:19,20).
Que estranha justaposição de símiles! Um grandioso contraste pode ser visto nesses dois versos: um piloto no mar e um pastor com seu rebanho. O mar em fúria, alvoroço, uma tormenta e tempestade e, paralelo a isso, um pastor junto a seu rebanho. De um lado vemos um quadro de inquietação, perturbação, ansiedade, estresse, com poderosas forças em ação; enquanto no outro tudo traduz tranquilidade, descanso, calma. Que diferença! Ainda assim, essa declaração representa tudo aquilo que o Senhor é para o Seu povo: um piloto, um pastor.
Precisamos ler todo o salmo para captar o pleno valor disso. A primeira parte do salmo é um registro da aflição, perplexidade, desorientação. Culmina em um grito de angústia, atingindo a agonia ao questionar se Deus “cessou perpetuamente a sua graça”? “Esqueceu-se Deus de ser benigno”? Vemos questionamentos a respeito do Senhor.
E então o escritor se lembra de algo e diz: “Então, disse eu: isto é a minha aflição… Recordo os feitos do Senhor, pois me lembro das tuas maravilhas da antiguidade”; e todo o tom do salmo muda. A lembrança e a recordação de como tudo aconteceu no longo prazo trouxe tranquilidade, conduzindo finalmente a essa conclusão.
Ainda assim, isso é apenas uma introdução porque, indubitavelmente, os dois últimos versos deste salmo são uma introdução ao salmo seguinte. O Salmo 78 é aquele grande registro histórico das relações do Senhor com Seu povo. Que longo salmo! Relata todos os movimentos do povo do Senhor e da orientação e trato do Senhor com eles. O salmista trabalhou dessa maneira. Com tudo o que temos aqui para uma útil, encorajadora e tranquilizadora meditação podemos, no momento, examinar apenas a essência da questão.
Mudarei a metáfora novamente, trocando do piloto navegando na tempestade e do pastor com o seu rebanho, para a do montanhista. Existem três picos que todo filho de Deus precisa conquistar, e esses picos são sugeridos neste salmo. Nós não somos realmente qualificados para o serviço do Senhor, até que os tenhamos conquistado. Eles nos desafiarão; e podem nos intimidar repetidas vezes. De uma forma ou de outra teremos que dominá-los e eles deverão parar de nos aterrorizar, não mais nos ameaçando, por não mais nos derrotarem ou enfraquecerem.
O Propósito Divino Governando Tudo
O primeiro desses picos que surge neste salmo com muita clareza é o propósito Divino que governa tudo. Sabemos como esta montanha se apresentou a Israel logo no começo de sua história. Quando o salmista se refere que ‘Pelo mar foi teu caminho’ e ‘as tuas veredas, pelas grandes águas’, do que será que ele estava falando? Indubitavelmente sobre como o Mar Vermelho os confrontou. Que terror, que pavor os acometeu naquela noite! Podemos imaginar como o vento do leste uivava e a água açoitava. Que pavor aquele mar representou para o povo, com que medo e tremor eles se aproximaram de seus bancos! As águas empilhadas como uma parede à esquerda e à direita pouco serviam para diminuir seu terror. Foi uma noite terrível, aquela da travessia do Mar Vermelho. Foi, em certo sentido, uma verdadeira montanha a ser enfrentada – e uma montanha de terríveis possibilidades para eles. Mas percebemos o que o salmista diz? Nossa tradução não nos dá a palavra exata, mas a palavra original que é usada para descrever o estado das águas sugere que elas estavam em dores de parto, que o mar estava em trabalho de parto, e a nação nasceu naquele mar. Uma nação nasceu no Mar Vermelho naquela noite e as águas estavam angustiadas. É uma imagem.
Vemos o propósito Divino trabalhando naquela tempestade: por trás do medo, do terror, tudo o que parecia tão horrível naquela noite, o propósito Divino estava governando, produzindo uma nação, trazendo uma nação ao nascimento: “Pelo mar foi teu caminho”.
Isso é uma coisa que mais cedo ou mais tarde teremos de compreender. Que aquilo que é furioso, terrível, temeroso, ameaçador, e que parece significar nossa ruína, na verdade está sendo governado pelo propósito Divino para produzir algo de grande valor para Ele. A lembrança disso salvou o salmista quando estava clamando com aqueles questionamentos: “Rejeita o Senhor para sempre? Acaso, não torna a ser propício?… Esqueceu-se Deus de ser benigno?” O salmista estava em um estado de aflição.
Acho que ele estava expressando o estado do povo naquele momento e imaginando se o Senhor não havia os abandonado completamente. Então ele diz: ‘Vamos olhar para trás – vamos voltar ao nosso começo como nação. Nós não nascemos em meio à uma ameaça? Não começamos nossa história naquilo que parecia falar de destruição? Não foi na mais terrível tempestade que nós, pelo grande poder de Deus, saímos como Seu povo, libertos, salvos, separados?’ Essa lembrança salvou o salmista naquela hora, e nós também teremos que chegar ao ponto onde diremos, a cada nova tempestade, fúria, ameaça, pavor, medo, ataque, seja o que for – Deus tem algo nisto; Seu propósito governa.
Mas então isso envolve outra coisa, traz algo mais com isso.
Ordenação da Sabedoria Divina
O segundo pico de montanha é este – a ordenação da sabedoria Divina. Há também uma sabedoria ditando o caminho, além do propósito do Senhor. O salmista olhou para trás e viu, dizendo para si mesmo: “Ah, na época não podíamos ver nenhuma sabedoria de Deus agindo, a maneira como estávamos indo parecia ser algo tão confusa, contraditória, tudo parecia ser qualquer coisa menos a direção da ordenação da sabedoria Divina… Mas agora posso ver: Deus escolheu o caminho, o método, os meios que Ele sabia que mais efetivamente alcançariam o Seu fim, e nós temos que conquistar aquela montanha”. Os caminhos que o Senhor toma nos parecem tão estranhos. O que Ele está fazendo? Por quê? Todas essas perguntas surgem. Mas a sabedoria está ditando o caminho até o fim.
O Controle do Amor Divino
E então, o amor Divino controla. Ele controla o fim, o caminho, os motivos. Sim, temos um Piloto; mas Ele não é um piloto desinteressado, apenas fazendo Seu trabalho sem qualquer relação de coração com as pessoas sob Seus cuidados. A metáfora muda imediatamente, como se dissesse: ‘Ah, há algo mais do que isso. Deus não está apenas nos conduzindo entre as dificuldades de maneira fria e imparcial. Ele é um Pastor.’ E se há uma imagem na Bíblia de um relacionamento de coração, o vemos na imagem do pastor. O coração de Deus está ligado ao Seu povo, e o salmista diz uma coisa interessante aqui. “Pelo mar foi o teu caminho; as tuas veredas, pelas grandes águas; e não se descobrem os teus vestígios”. O que ele quer dizer com essas palavras?
Volte novamente para o outro lado do Mar Vermelho, depois que toda a situação passar. O vento se aquietou e a tempestade parou. Olhe e procure onde estão as “pegadas” Dele e não conseguirá encontrá-las. Não poderemos dizer: “Ele fez isso e aquilo”. Não poderemos descobrir como Ele fez as coisas. O fato é que Ele fez, e isso é tudo. Não poderemos explicar, definir, indicar isso. O salmista está dizendo: “É assim que Deus faz as coisas”.
Ele faz as coisas mais maravilhosas, que envolvem toda a questão da vida e da morte para nós; mas depois que Ele as fez, simplesmente não podemos ver qualquer traço de como Ele fez. Não é verdade? Nós nos deparamos com uma situação como a do Mar Vermelho, e dizemos: ‘Como vamos dominar isso? O que o Senhor vai fazer com esta situação?’ Mas Ele apenas faz. Nós olhamos para trás repetidamente, e dizemos: ‘O Senhor fez isto, mas como, não sei’. “Não se descobrem os teus vestígios”. Não podemos descobrir como o Senhor faz as coisas, mas Ele as faz.
Ele traz a grande tempestade para servir ao Seu fim, pela Sua sabedoria, no Seu amor, porque Ele é o Pastor do Seu rebanho – porque o Seu coração está ligado a eles. Ele se importa conosco.
Publicado na Revista “Uma Testemunha e Um Testemunho”, de Mar-Abr 1953, Vol.31-2, de T. Austin-Sparks.