A Eira

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A Eira são nossas notas baseadas no artigo “The Threshing Floor”, de T. Austin-Sparks. Esse artigo é a transcrição de uma mensagem proferida em fevereiro de 1959. É importante salientar que não se trata de uma tradução do texto original, mas da nossa compreensão daquilo que o autor escreveu, podendo conter divergências em relação ao seu entendimento. ***

T. Austin-Sparks (1888-1971)

“A sua pá, ele a tem na mão e limpará completamente a sua eira; recolherá o seu trigo no celeiro, mas queimará a palha em fogo inextinguível” (Mateus 3:12).

“Quando chegaram à eira de Nacom, estendeu Uzá a mão à arca de Deus e a segurou, porque os bois tropeçaram. Então, a ira do SENHOR se acendeu contra Uzá, e Deus o feriu ali por esta irreverência; e morreu ali junto à arca de Deus”. (2 Samuel 6:6,7).

“Enviou Deus um anjo a Jerusalém, para a destruir; ao destruí-la, olhou o SENHOR, e se arrependeu do mal, e disse ao anjo destruidor: Basta, retira, agora, a mão. O Anjo do SENHOR estava junto à eira de Ornã, o jebuseu”. (1 Crônicas 21:15).

“O profeta que tem sonho conte-o como apenas sonho; mas aquele em quem está a minha palavra fale a minha palavra com verdade. Que tem a palha com o trigo? — diz o SENHOR. Não é a minha palavra fogo, diz o SENHOR, e martelo que esmiúça a penha?” (Jeremias 23:18,19).

***

É impressionante que tantos pontos de inflexão ou crises na Bíblia tenham a eira como pano de fundo. Observamos que alguns desses momentos representaram importantes pontos de inflexão para o povo de Deus.

Como podemos nos lembrar, na primeira instância que citamos, Davi tinha sido estabelecido no trono de acordo com a Palavra do Senhor e a unção – subindo para Jerusalém. Saul estava morto e Davi desejava trazer a Arca do Senhor para Jerusalém. Aquele representou um momento decisivo e muito vital na história do relacionamento de Deus com Seu povo.

Na segunda menção, o Templo estava entrando em cena, aquela grande representação simbólica da Casa de Deus estava diante de nós e tudo girava ao redor desta eira; pois aquele lugar, a eira de Ornã, tornou-se o local de edificação do Templo – aquilo representou um grande desenvolvimento no plano de Deus.

No caso da passagem de Jeremias, vemos uma crise tremenda porque na condenação dos falsos profetas vemos que eles haviam sido responsáveis pelo desvio do povo de Deus, chegando ao ponto de se tornar necessário o seu exílio e cativeiro. O Senhor fala da palavra desses falsos profetas como ‘joio’, ‘palha’, e estabelece a grande diferença usando essa pergunta: “Que tem a palha com o trigo?”.  Esse foi um grande ponto de virada na vida espiritual do povo de Deus.

O que a eira representa

Tudo isso nos leva à eira. Conhecemos o propósito geral e a atividade realizada na eira. Hoje chamamos a eira de  uma debulhadora; sabemos o que significa, o que representa.

Em primeiro lugar, a eira representa discriminação e separação; discriminação entre o verdadeiro e o falso, e a ação de separar essas duas coisas. Se você olhar todas as passagens mencionadas, verá que era isso que estava em vista – essa discriminação tão necessária entre o que é verdadeiro e o que não é; e, ao processar essa discriminação, colocar as coisas em seu devido lugar, em sua categoria adequada. 

“Isso deve ser estabelecido ali e isso aqui. Essas duas coisas são diferentes, completamente diferentes, são de esferas diferentes.” 

Essa é a primeira ação e significado da debulha: abordar toda a questão da diferença entre o que parece ser, mas não é, e o que realmente é.

Você pode escrever apenas uma palavra na porta de qualquer eira, ou inscrever em qualquer instrumento de debulha: realidade, realidade! É o que Deus iria inscrever. Esse é o efeito: proteger a realidade; para estabelecê-la; e libertar a realidade de todo faz de conta e de toda falsidade – das aparências, o que parece, mas não é. 

A aparência e a realidade

Aparência e realidade; aquilo que é meramente externo e o que de fato interior. Isso é o que se passa na eira. Ou ainda, seria uma discriminação entre o que é frágil e não será capaz de resistir aos ventos adversos, e aquilo que é substancial e resiste ao teste. 

No Oriente, até hoje, temos uma forma muito simples de debulhar. A eira é edificada em alguma posição onde receba uma corrente de ar, onde o vento sopra – um espaço aberto, exposto aos elementos. E então, com um simples ‘leque’, como um batedor de tapete com pontas, os grãos são batidos, jogados, lançados no ar, e o joio vai embora com o vento, enquanto a semente sólida cai no chão e se amontoa. É claro que nossos métodos modernos são diferentes, mas o efeito é o mesmo: deixar ir o que sair; para se livrar do que não pode suportar, enfrentar os elementos e assegurar aquilo que é de fato substancial.

O Senhor permite o Seu vento soprar

O Senhor permite que Seu vento sopre sobre todos nós. Debulhar não é uma coisa suave e gentil; pode ser muito difícil, parecer cruel, mas todos concordamos que é algo extremamente necessário. 

Suponha que você se alimenta de algo feito a partir do trigo, mas que nunca foi separado do joio! O vendedor teria muitos problemas, não é? Na verdade, você questionaria: “Por que isso não foi devidamente debulhado? Por que foi permitido ser vendido assim?” Sim, todos concordamos que a eira é um processo absolutamente necessário; é essencial. 

Mas é também um processo difícil; a semente ser batida é muito doloroso, a exposição aos elementos, o soprar do vento, esse processo de redução à realidade substancial. 

Nós sabemos por nós mesmos que muita coisa em nós não pode seguir com Deus, não permanecerá. Não desejamos que permaneça; queremos que vá embora, sabemos que muitas coisas são como ‘palha’ em nossas vidas; como um ‘faz-de-conta’, ‘apenas aparência’, algo frágil, irreal… mas não sabemos até que ponto isso é verdade até chegarmos à eira Divina. A partir daí começarmos a descobrir quanta realidade há em nós. Às vezes nos perguntamos se vai sobrar alguma coisa, mas o Senhor sabe. Sim, o Senhor sabe.

Um processo necessário

É necessário passar por isso de vez em quando, tanto no que diz respeito a nós individualmente, como naquilo que se refere ao povo do Senhor. Esse processo da eira é recorrente, apesar de não gostarmos da ideia de que ele precise ocorrer anualmente, como acontece na natureza. O Senhor, de vez em quando, traz tudo para a eira e ali, por meio de uma provação dolorosa, começa a se aprofundar nessa questão da realidade em nossas vidas. 

Muitas perguntas começam a surgir: Como chegamos onde estamos? Temos uma base sólida para estar nessa posição? Quanto do que pensamos possuir realmente temos? Quanto de tudo o que recebemos não passou de um mero ensino, e quanto se tornou parte da nossa própria vida, para nos sustentar em tempos de adversidade? A adversidade tem permissão para trazer tudo isso à tona, trazer isso à luz. 

Mas qualquer que seja o efeito, ou quantos sejam eles, Deus busca algo, e concordamos com Ele: tudo precisa ser real, cem por cento real, e toda a casca de profissão, fingimento, irrealidade, formalismo e mero ensino mental não é aceitável. Nada dessas coisas. Podemos ter apenas um pequeno grão, mas que seja REAL! O Senhor está reduzindo tudo a isso.

E assim é dito do Senhor Jesus: “A sua pá, ele a tem na mão e limpará completamente a sua eira”.

O Senhor não tolera mistura

Nesses casos que citamos acima é muito evidente que havia essa confusão e mistura, e o Senhor não podia tolerar. Repito, é impressionante que as questões tenham todas sido resolvidas em uma eira. Considere esta questão de trazer a Arca à Jerusalém, trazendo o testemunho ao lugar Divinamente apontado e designado. 

Tome nota de tudo isso: ali vemos o Testemunho de Deus sendo reestabelecido onde deveria estar, ao ponto que seria possível retirar os varais da arca (os símbolos do progresso) e finalmente alcançar o objetivo do Senhor nesse assunto (1Rs 8:8). 

Davi tentou trazer a Arca para Jerusalém, mas passou algum tempo vivendo entre os filisteus, por falta de fé. Digo falta de fé porque Davi disse: “Pode ser que algum dia venha eu a perecer nas mãos de Saul; nada há, pois, melhor para mim do que fugir para a terra dos filisteus” [1Sm 27:1]. 

Embora ungido, Davi entrou em colapso deibaixo da pressão da perseguição constante de Saul e foi morar na terra dos filisteus. Ali ele viu como os filisteus faziam as coisas e foi lembrado de que os filisteus faziam carros, máquinas, entre outras coisas. Quando os filisteus tomaram a Arca de Israel, e eventualmente, começaram a sofrer juízo como consequência disso, eles a enviaram de volta para Israel em um carro. Davi conhecia um pouco desse maquinário dos filisteus, dos costumes do mundo. Ele voltou para Israel e quando trouxe a Arca para Jerusalém, fez um carro novo e colocou a Arca nele. Consequências desastrosas!

Sabemos que finalmente Davi aprendeu a discriminar isso em seu coração, quando olhou para a Palavra de Deus e, finalmente, disse: “Os levitas deveriam carregar a Arca de Deus”. 

Que diferença entre um mero dispositivo mecânico, maquinário, organização e métodos mundanos, de acordo com os padrões de negócios deste mundo – aquilo que representa a mente natural e incircuncisa dos filisteus – e homens vivos: levitas, cujos própria origem, vida e serviço provém do sangue. 

Homens vivos, que pelo sangue foram cortados de todo o caminho natural, foram circuncidados pela Cruz de Jesus Cristo. Deus é muito específico sobre Seus princípios espirituais, em todas as épocas. 

Portanto, quando chegaram à eira de Nacom, não é de se admirar que os bois tenham tropeçado! Tudo ruiu, a procissão foi interrompida; a Arca foi deixada de lado; e por muitos meses ela permaneceu lá até que a lição fosse aprendida.

O que tem a palha com o trigo?

O que tem a palha com o trigo? O Senhor não tolerará esse tipo de coisa: mistura do mundo e seus métodos na vida de Seu povo, desses meros mecanismos para levar adiante Seu testemunho. Não! Tudo resultará em confusão até que tenhamos isso claramente estabelecido: o testemunho de Deus deve ser manifestado na vida de homens vivos! Homens vivos! Todos os envolvidos neste Testemunho de Deus devem ser vivificados, como pessoas, no que diz respeito a Ele.

Há uma outra coisa que, naturalmente, decorre disso: “Uzá estendeu a mão e segurou a arca.” Pode ser fatal sentir-se muito familiarizado com as coisas sagradas! Pode ser desastroso considerar as coisas sagradas de Deus, tornando-as em algo tão comum, ao ponde de acreditar que nós mesmos podemos cuidar delas, manipulá-las e ter esse tipo de associação tão familiar. Bem, Uzá aprendeu essa lição de que não podemos fazer isso; e todo o Israel aprendeu também. Parece difícil, não é? Não gostamos de falar assim, mas essa é a ‘eira’. 

Mais tarde, a Arca estava em Jerusalém estabelecida nas bases corretas, por meio de métodos adequados; e tudo estava estabelecido. Israel estava gozando de bênçãos e prosperidade, crescendo e se expandindo. 

O Censo

Então a palavra nos diz que: ‘Satanás se levantou contra Israel’ [1Cr 21:1]. Satanás se levantou contra Israel, é claro, com o objetivo de destruir seu Testemunho. E como ele fez isso? Ele moveu Davi para contar o povo. 

O que isso significa? Davi desejou fazer um censo para dizer: “Que nação maravilhosa nós temos! Sou o rei desse povo! Olhem! Vejam que maravilha!” Podemos quase ouvir Nabucodonosor dizendo: “Não é esta a grande Babilônia que eu edifiquei?” [Dn 4:30]. Também podemos nos lembrar do próprio Satanás, se voltarmos antes dos tempos eternos, quando disse, “Eu exaltarei meu trono acima das nuvens!” [Is 14:13,14]. Aí está o orgulho da auto-exaltação, da auto-gratificação; da vanglória. 

Isso é exatamente o oposto da dependência: a humilde, mansa e consciente dependência de Deus. Ainda que as coisas tenham tomado proporções maiores, Deus tenha abençoado grandemente, nunca devemos perder o profundo senso de dependência absoluta do Senhor. 

Satanás é a personificação da independência de Deus. Deus não vai aceitar isso. Se Ele expulsou Satanás do céu por causa disso, Ele não permitirá que um homem na terra seja governado por esse mesmo espírito.

Assim, uma terrível praga se iniciou sobre a terra, ceifando as pessoas aos milhares, reduzindo a imensidão daquele reino. O ponto de virada aconteceu na eira de Ornã. Vemos, o julgamento da carne orgulhosa, independente, se gloriando nas coisas. Quando isso for resolvido, então haverá um caminho para a Casa de Deus, porque a Casa de Deus não pode conter nada disso. 

O lugar da habitação de Deus

Ali é o lugar de dependência de Deus; a personificação da casa na mansidão de Jesus Cristo. É ali, na ‘eira’, que resolvemos essa questão. O Senhor nos levará à eira se a qualquer momento estivermos em perigo de nos gloriarmos nas coisas, deixando de depender totalmente dEle. Nenhum orgulho pode adentrar na Casa de Deus. 

Bem, podemos ver a partir desses exemplos e ilustrações, que devemos ver na Palavra de Deus como repetidamente o Senhor intervém em situações como essas, como se afirmasse: “Veja, estamos ficando um pouco confusos; misturando as coisas, que não estão tão claras e transparentes como gostaria; vamos fazer algo a respeito.” 

Nesse momento Deus envia os Seus ventos para soprar a palha, mas esse processo é muito devastador para tudo o que não é de Deus. Apesar disso, esse vento coopera com a fundamentação da profunda e verdadeira obra do Senhor, pois Ele nunca opera em linhas destrutivas, negativas. Ele é sempre positivo. 

Há tempo para tudo

Se você está passando por um momento ruim; se está na eira e o Senhor parece estar tratando com muita coisa, e você começa a se perguntar se alguma coisa vai de fato permanecer, lembre-se de que o Senhor não está atrás de sua destruição, sua aniquilação, seu fim. 

O Senhor busca algo sólido, para te estabelecer; e realmente obter o que permanecerá. Esse é o ponto, o Senhor busca aquilo que permanece, e está se livrando de tudo mais, seja o que for. Todos nós seguimos por esse caminho. 

Muitos de nós talvez tenha nascido no Cristianismo, em um lar cristão. Aprendemos muito com a associação com coisas cristãs; podemos ter recebido muito ensino cristão, mas isso não significa que tudo seja realmente verdade em nós, simplesmente por causa disso. O Senhor vai testar nossas bases de vez em quando.

Só o que é realmente inútil será destruído, enquanto o trigo será colhido e armazenado em Seu celeiro. O Senhor busca o trigo, Ele anseia por aquilo que permanece. Que possamos ter graça! Ele nem sempre nos manterá na eira, diz Isaías: “Acaso, é esmiuçado o cereal? Não; o lavrador nem sempre o está debulhando” [Is 28:28]. 

O Senhor nem sempre estará esmiuçando. Há ocasiões em que isso acontece, e esse tempo parece se prolongar, eu sei; e nos perguntamos se algum dia sairemos da eira. Mas, na ordenação da natureza, isso ocorre em apenas uma parte do ano, não é? É uma coisa que precisa ser feita. Tem seu lugar, seu tempo, seu propósito, mas passará. Pode voltar a acontecer mais tarde quando for necessário, mas o Senhor nem sempre estará debulhando!

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