O artigo “Parábolas da Cruz – 5” é a tradução do capítulo 5 do livro “The Parables of the Cross”, de Isabella Lilias Trotter, publicado em 1890.
***
Isabella Lilias Trotter (1853-1928)
“Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, produz muito fruto” (João 12:24).
A morte para o ego é o caminho para uma vida de sacrifício
[Estou sendo já oferecido por libação – 2Tm 4:6. Mensure a vida pela perda, não pelo ganho, não pelo vinho bebido, mas pelo derramado, porque a força do amor reside no sacrifício, e aquele que mais sofre, mais tem a oferecer].
Leia o post anterior aqui.
Há muito tempo, esse dente-de-leão entregou suas pétalas douradas, chegando ao seu ponto culminante na morte. Esse delicado globo formado por sementes em breve se romperá, entregando tudo até nada mais possuir.
Que revolução viria sobre esse mundo – cheio de famintos por todos os lados, se esse fosse nosso padrão de entrega, se o povo de Deus se aventurasse em “se tornar pobre” como Jesus, pela necessidade ao seu redor. Que bom seria se o “eu”, o “mim” e o “meu” fossem realmente deixados de lado, e não mais fossem considerados quando se deparassem com tais necessidades.
O momento dessa nova morte está claramente definido no globo do dente-de-leão, e é marcado pelo desapego. Não há sentimento de angústia, pois já está preparado, sustentando sua pequena vida, sem saber quando, onde ou como o vento irá soprar e levá-la embora. Ele não se sustenta mais para si mesmo, mas apenas para ser entregue, o sopro do vento faz o resto, transformando a “prontidão da vontade” em “ação” (2Co 8:11).
Para uma alma que foi conduzida até esse ponto por meio de “mortes frequentes”, até mesmo aqueles atos que parecem envolver um esforço de sua parte, tornam-se em algo natural, espontâneo, envolvidos pela “involuntariamente do celestial”, pois são simplesmente um resultado do amor de Cristo que nela habita.
Não deveríamos pedir a Deus para nos indicar onde está o obstáculo para esse esvaziamento? Não é só o egoísmo, em seu sentido comum, que o impede. Muito tempo depois que fomos purificados pelo Sangue Precioso, a vida do ego ainda pode permanecer desapercebida sob as formas mais sutis. Ela pode coexistir com muitas coisas que se assemelham ao sacrifício, utilidade e abnegação, e, ainda assim, debaixo dessa superfície, ainda pode permanecer um apego aos nossos próprios julgamentos, uma confiança em nossos próprios recursos, uma tomada inconsciente de nosso próprio caminho, mesmo no serviço a Deus.
Essas coisas se mantêm firmes, segurando nossa alma e suprimindo o Espírito em Sua obra. A vida latente do ego precisa ser trazida para o local da morte, antes que o sopro do Senhor possa nos levar para lá e para cá, quando o vento soprar as sementes. Estaremos prontos para esta última rendição?
Você se pergunta: “Será que Deus realmente deseja que o esvaziamento chegue até esse ponto?”
Estude a vida interior de Jesus. “Não falo de mim mesmo”, disse Ele. “Eu nada posso fazer de mim mesmo”; “não procuro a minha própria vontade, e sim a daquele que me enviou” [Jo 5:30]. Sua vida humana sem pecado foi estabelecida para que Ele pudesse viver por meio do Pai. Não deveríamos entregar a nossa vida do ego, contaminada e sem valor, para que também possamos viver por meio dEle?
Mas como isso seria possível? Novamente, não devemos lutar e combater, mas morrer para isso em Jesus. “Estou crucificado com Cristo”. Na própria essência do meu ser, me entrego à morte, e pelo poder misterioso com que Deus responde à fé, descubro que Ele a torna em algo real: os laços são soltos e Ele pode ter o Seu caminho livre comigo.
[Não com tristeza, ou por necessidade – 2Co 9:7].
Veja nessas vagens selvagens como os últimos filamentos minúsculos precisam ser quebrados e, com isso, tudo o que eles possuem é liberto para o uso de Deus no mundo que os rodeia.
Toda relutância, todo cálculo, todo reter se foram. Agora, as cascas são abertas e as sementes podem se soltar, sem impedimentos. As quebras são sucessivas:
– a semente se quebrou para entregar os brotos;
– o broto da folha se quebrou, para liberar a folha, e o botão de flor também fez isso para liberar a flor;
– mas tudo não teria nenhum proveito prático, se agora seu conteúdo fosse retido.
“O cumprimento da lei é o amor” [1Co 13:10], e o sacrifício é o próprio alento vital desse amor. Que Deus nos mostre todos os fios retidos do ego que precisam ser quebrados, e que Seu toque os leve a murchar até a morte.
[Eu de boa vontade me gastarei e ainda me deixarei gastar – 2Co 12:15].
Veja como esse pedaço de aveia está se esvaziando. Observe a grande abertura dos invólucros das sementes, que entregam tudo o que tem. Veja como, em seguida, elas dobram suas mãos: a obra está concluída. “Ela fez o que pôde” [Mc 14:8]. Oh, que profundidade de descanso recai sobre a alma, quando a voz do Amado lhe diz essas palavras! Seriam elas proferidas para nós?
Aquele vaso que contém as sementes não ambiciona mais nada, além da chance de se derramar. Seu propósito é cumprido quando o vento sacode a última semente, e o pedúnculo é abatido pelas tempestades de outono. Não apenas se gasta, mas “se deixa gastar”, finalmente. É por intermédio da pobreza de Cristo que somos enriquecidos: “pobres, mas enriquecendo a muitos“, é a marca daqueles que seguem Seus passos [2Co 6:10].
Será que estamos, de fato, seguindo Seus passos? Como os lugares mais escuros da terra clamam por todo esse poder de doar, viver e amar que estão trancados em tantos corações!
Como lugares desolados suplicam pelo tesouro que existe em abundância, estocado nas sementeiras do jardim de Deus que não foram quebradas nem esvaziadas para o Seu mundo, liberadas para o Seu uso.
Não liberaremos tudo de bom grado? Não é com má vontade ou por necessidade que os pequenos escrínios se partem e espalham a semente, mas essa é uma doação alegre, e que Deus ama. Você já reparou quantas vezes o cálice vazio se transforma num diadema? Eles são coroados por seu ministério, como se estivessem se gloriando em seu poder de se dar, à medida que o tempo se aproxima?
[Coroado… para que… provasse a morte por todo homem. Nos constituiu reis e sacerdotes para Deus. Sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais – Hb 2:9; Ap 1:6; 2Pe 2:5].
Até mesmo nesse mundo, em certa medida, a fidelidade até a morte e a coroa da vida andam juntas. Se com Ele sofrermos, também com Ele reinaremos.
Mas é quando o sol deixa nosso horizonte para iluminar terras longínquas na primavera que a glória tem início. É no outono, quando realizamos a colheita, e os frutos são armazenados para o uso do homem, que o brilho vermelho e dourado toca e transfigura os arbustos e árvores com uma beleza que não era visível nos dias de verão.
O mesmo acontece conosco: o puro e claro alvorecer da purificação através do Sangue, a alegria do nascer do sol na vida da ressurreição; a luz do meio-dia e o calor do crescimento e do serviço, todos são bons, em seu próprio tempo. Aquele, no entanto, que pára no meio do processo, perde a coroa da glória, diante da qual o reluzir dos dias anteriores se empalidece e desbota.
O brilho e o esplendor de uma vida entregue à morte começam a se acumular, quando uma vida é derramada para Jesus e por Seu amor a outros. É a partir daí que até as coisas mais comuns passam a manifestar uma nova beleza, como acontece no pôr do sol, pois Sua vida se torna “manifesta em nossa carne mortal” [2Co 4:11]. Uma flor desabrocha sobre a alma, como a beleza do fruto surge, no momento do seu sacrifício.
Que possamos aprender a morrer para tudo que é egoísta por meio dessa alegria majestosa, que é capaz de tragar vitoriosamente a morte nesse mundo de Deus que nos rodeia! O Senhor pode tornar cada passo do caminho inundado por esse triunfo da alegria, assim como reluzem as folhas douradas. Glória ao Seu Nome!
E o resultado, como acontece no outono, é que um novo poder passa a ser liberado, um poder para multiplicar a vida ao nosso redor. A promessa feita a Cristo foi que Ele veria Sua posteridade, por ter derramado Sua alma na morte. Ele conduz Seus filhos, em pequena medida, pelo mesmo caminho que tomou [Is 53:10,11].
Repetidamente vemos a promessa da semente atrelada ao sacrifício, como aconteceu com Abraão, Rebeca e Rute; todos aqueles que entregaram tudo ao Seu comando, receberam cem vezes mais, pois o sacrifício é o fator de Deus na Sua obra de multiplicação.
“Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, produz muito fruto” [Jo 12:24].
A vida derramada é abençoada por Deus – essa vida não atenta para si mesma, se ao menos outras almas puderem ser conquistadas. “Pedi, e dar-se-vos-á” é uma das lições iniciais de Deus para Seus filhos [Mt 7:7]. “Dai, e dar-se-vos-á”, vem logo a seguir [Lc 6:38].
A razão é que, para aquele que está pronto para abandonar a própria vida, Deus, o Espírito Santo, pode vir, habitar e operar sem restrições. Por meio dessa habitação, Ele manifestará dentro de nós Seu maravilhoso poder Divino de comunicar vida – de reproduzir a imagem de Jesus nas almas ao nosso redor.
É verdade que uma regra às vezes tem exceções, para alguns, uma vida abençoada com frutos para Deus ocorre maneira simples, sem nenhum processo aparentemente severo de morte, da mesma maneira que existem plantas que se reproduzem por meio de bulbos, rizomas e tubérculos, sem precisar passar pelo processo de despojamento e dispersão que acabamos de contemplar.
Mas a lei da criação é que as ”ervas dão semente e árvores frutíferas que dão fruto segundo a sua espécie, cuja semente esteja nele, sobre a terra” [Gn 1:11]. Que seja a causa de alegria, então, ver esta lei se cumprir em nós.
“Se morrer, produz muito fruto”. Seja servindo entre os perdidos, ou por meio de dores de parto pelos filhos de Deus, para que Cristo seja formado neles. De qualquer maneira, teremos vida trazida à luz.
Isso não implica no fato de que toda semente brotará, pois isso não ocorre na natureza. A obrigação da planta é dispersar as sementes, sem retê-las, não sabendo qual delas prosperará, esta, aquela, ou até mesmo as duas. Uma vez que as sementes são dispersas, a responsabilidade é transferida para o solo que as recebe. Mas o objetivo da planta – de todos os brotos, flores e seu consequente amadurecimento – é que todas as sementes tenham a vida potencial contida dentro delas.
Assim, somos responsáveis, não pelos resultados tangíveis de nosso ministério a outros, mas por ministrar na demonstração do Espírito e do poder. Esse serviço irá transferir àqueles que estão ao nosso redor a responsabilidade por aceitar ou rejeitar a plenitude da salvação oferecida por Deus. Nesse caso, os “sinais” se seguirão.
“Será para aquele cheiro de morte para morte, e para com aqueles, aroma de vida para vida” [2Co 2:16].
Mas “quer ouçam quer deixem de ouvir… hão de saber que esteve no meio deles um profeta” [Ez 2:5].
* * * * * * * *
Mas, mesmo quando o objetivo da planta é atingido, esse não é o seu fim. “Não há um fim na natureza, mas cada fim aponta para um novo começo, indicando o início de uma nova fase”.
“Enquanto durar a terra, não deixará de haver sementeira e ceifa” [Gn 7:22].
A vida conduz à uma nova morte, e essa morte nos leva de volta à vida. Sempre que pensamos ter aprendido a lição, estaremos iniciando uma nova rodada nessa espiral Divina de “perigos de morte, muitas vezes” [2Co 11:23 / 1Co 15:31] que será a medida de nosso crescimento, seremos “sempre entregues à morte por causa de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal” [2Co 4:11].
[Morrendo e, contudo, eis que vivemos – 2Co 6:9].
Esse pedaço de esfagno evidencia esse processo em miniatura: vemos estágio após estágio da morte sendo coroado constantemente com vida. Cada vez que a coroa afunda novamente na morte, essa morte é novamente coroada com vida. No próprio ato de morrer, a vida sempre está aparente. A morte diária que está no pano de fundo, passa quase que desapercebida diante do olhar que a vislumbra.
Sim, a vida mais elevada, a vida da ressurreição, é radiante, alegre e forte, pois é uma representação aqui embaixo dAquele que vive, esteve morto, mas está vivo para sempre [Dn 7:11; Ap 1:18].
Foi necessário enfatizar o portão da morte nessas páginas, mas um portão nunca será um lugar de habitação. Nossa almas não devem parar e pairar no estágio da morte, mas devem atravessá-lo com o exercício da vontade na direção da luz que está adiante. Podemos e devemos, como as plantas, preservar suas marcas, mas elas devem ser visíveis a Deus, não ao homem. Afinal, acima de tudo, isso deve fluir e transbordar na vida de Jesus. Não ofusquemos ESSA VIDA pela sombra do desânimo ou da melancolia. Nosso Deus não é Deus de mortos, mas de vivos [Mt 22:32], e deseja que deixemos brilhar a glória de Sua alegria.
Pense nessa maravilha – a própria Fonte da Vida brota de dentro de nós, substituindo tudo o que entregamos, pouco a pouco, no Seu sepulcro.
“Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” [Gl 2:20].
Pouco temos experimentado dos recursos residentes nessa poderosa habitação. Pouco aprendemos sobre o que é ter todas as fibras da nossa alma entretecidas pelo Seu poder. Que Deus nos conduza, não importa qual seja o preço, à tudo o que se pode aprender a esse respeito aqui na terra.
Os resultados não precisam terminar com o fim de nossos dias. Se Jesus tardar, nossas obras nos seguirão. O cumprimento dos sinais ao nosso redor podem nos fazer acreditar que não provaremos a morte, e faz-nos sentir como se o tempo que nos resta para trabalhar e sofrer por Ele estivesse ficando cada vez mais curto.
Mas, se esse último portão precisar ser cruzado antes que nossos espíritos sejam libertados para a terra da vida perfeita, Deus poderá usar, pela maravilhosa solidariedade de Sua Igreja, essas coisas que Ele operou em nós para a bênção de almas desconhecidas.
A vitalidade ainda pode ser transmitida, da mesma forma que esses galhos e folhas de anos passados do azevinho cuja individualidade é esquecida, ainda transmitem vida aos brotos recém-nascidos. Só Deus conhece as infinitas possibilidades entesouradas em cada um de nós!
[Suas obras os acompanham – Ap 14:13].
Não deveríamos permitir que Ele faça o que Lhe apraz? Não devemos seguir com Ele por todos os Seus caminhos, para cumprir Seus planos para nós? Não deveríamos seguir como as “plantas que recobrem a terra” em sua inconsciência, ainda assim manifestando a glória do livre arbítrio? Não devemos traduzir em nossa vida a sua história?
Aprender do ensino da natureza a respeito da entrega e sacrifício não se trata de misticismo fantasioso; mas uma realidade simples que pode ser experimentada a todo momento – e deve ser provada.
Se estivermos compreendendo a morte de Cristo em Seu poder libertador, nossos lares não se demorarão a encontrá-la.
* * * * * * * *
“Ó Jesus crucificado, Te seguirei nos Teus caminhos. Inspire-me para o próximo passo, seja à sombra da morte ou da luz. Certamente o lugar onde estiver meu Senhor, o Rei, seja na morte ou na vida, também ali estará Teu servo.
Amém”.
Isabella Lilias Trotter (1853-1928) era uma amante da beleza e de Deus, e isso foi demonstrado em sua vida como artista, autora e missionária. Nascida em 1853 em uma família rica de Londres, seu talento foi notado pelo famoso crítico de arte John Ruskin. No entanto, em vez de seguir uma carreira artística, sentiu-se comissionada para ir à Argélia como missionária. Após ter sido rejeitada por uma sociedade missionária, seguiu para aquele país de forma independente, junto com outras duas mulheres solteiras. Ali viveu até sua morte, em 1928. A mensagem do livro “The Parables of the Cross” é simples e, ainda assim, de grande profundidade espiritual. Todas as imagens anexadas aos posts são de sua autoria. Mas a grande contribuição de Lilias Trotter não se resumiu em fazer belas ilustrações, mas principalmente pela capacidade de ilustrar verdades espirituais profundas que lhe eram percebidas a partir da natureza e da vida ao seu redor.
Mais informações sobre sua vida podem ser lidas na Wikipedia e em outros sítios na Internet, também em diversos livros escritos sobre sua vida.