T. Austin-Sparks (1888-1971)
“Assim, pois, importa que os homens nos considerem como ministros de Cristo e despenseiros dos mistérios de Deus. Ora, além disso, o que se requer dos despenseiros é que cada um deles seja encontrado fiel” (1 Coríntios 4:1,2).
Leitura: 1Co 4:1,2; 1Co 9:17; Tt 1:7-8; Cl 1:25; 1Tm 1:4
O assunto da nossa meditação é a mordomia. Um mordomo é um homem que, por um lado, mantém um relacionamento vivo com tudo o que seu senhor possui e, por outro lado, mantém um relacionamento igualmente íntimo com todos aqueles que buscam seu senhor para suprir suas necessidades ou receber algo de suas riquezas.
Assim, o mordomo se torna responsável pela reputação de seu mestre. O que o mundo saberá a respeito do seu mestre está relacionado à sua conduta, e o que o mundo ou a família do mestre receberão de enriquecimento dependerá muito dele. Esta é uma ilustração muito simples, mas é isso, e muito mais que está associado à palavra “mordomo” ou “mordomia”.
O apóstolo Paulo denominou a si mesmo um mordomo ou despenseiro, e é impressionante notar que ele aplica o mesmo termo aos crentes na assembléia de Corinto. Podemos entender facilmente que Paulo era um mordomo, mas quando ele se dirigiu ao povo na assembleia de Corinto, dizendo: “Importa que os homens nos considerem como ministros de Cristo e despenseiros dos mistérios de Deus” (1Co 4:1), ele incluiu todos eles, indicando a transferência dessa designação para os crentes comuns. Não podemos, portanto, fugir desse assunto dizendo: ‘Bem, essa questão se aplica às pessoas especiais como Paulo!’. Isso se aplica claramente às pessoas comuns como os coríntios, assim como se aplica a nós. A exortação de Paulo é que os homens devem ser capazes de nos considerar como mordomos.
A Responsabilidade
Isso nos remete à algo mais do que meramente ter uma posição como crentes. Talvez pensemos que as pessoas do mundo nos consideram cristãos. Eles o farão de qualquer maneira, se fizermos uma profissão de fé. Mas esse pensamento Divino da mordomia nos leva muito além, nos conduzindo a um lugar de responsabilidade específica e definida primeiramente para com o Senhor, vinculando os Seus interesses a nós de maneira ativa; e então, em segundo lugar, de maneira prática, em direção aos homens. Somos mordomos, estamos em um ponto bem no meio, possuindo uma responsabilidade nessas duas direções.
De tempos em tempos, o povo do Senhor precisa ser lembrado da sua responsabilidade. Há uma tremenda responsabilidade que repousa sobre todos os que estão relacionados ao Senhor, porque esse relacionamento nunca é passivo, nem deveria ser. Não é o caso de sermos apenas membros de uma família e ponto final. Ser membro da família da fé é apenas uma parte da verdade. É claro que tem seu próprio sentido e valor. O fato dos crentes serem chamados por várias designações que até parecem se contradizer não representa um conflito real, pois percebemos que esses são apenas muitos aspectos de um todo, e não são mutuamente exclusivos.
Por exemplo, nos relacionamentos terrenos, um membro de uma família estaria impedido de ser seu mordomo, mas no relacionamento espiritual não é assim. Precisamos manter o relacionamento familiar em seu próprio lugar, reconhecer que traz suas próprias responsabilidades e obrigações, e possui seu próprio significado e valor. Tendo isso corretamente estabelecido, ainda encontramos a posição de mordomia, onde é assumida uma grande e bem específica responsabilidade. Isso é para todos. Todos somos chamados a ser mordomos – esse é o propósito de Deus para cada um de nós. Tal observação nos leva a uma ou duas considerações importantes.
A Qualificação para a Mordomia
Um fato importante, que deve ser claro para todos nós, é que todos os tratos do Senhor conosco têm o objetivo de nos tornar mordomos eficazes para cada necessidade. Um mordomo deve ser qualificado para a sua mordomia, tendo ele certas características definidas. O cumprimento da sua mordomia demandará por experiência. Ele não pode entrar em uma verdadeira mordomia espiritual de acordo com sua própria vontade. Deve haver uma verdadeira preparação, desenvolvimento e concessão dessa mordomia. Se lermos atentamente aquilo que Paulo disse sobre a mordomia, veremos que ela é muito prática, ativa e profunda. Ele estava consciente da necessidade de capacitação, dos dons e das qualificações especiais para sua preparação. Por isso, precisou passar por experiências especificas. Mordomia demanda disciplina profunda.
Para nos tornarmos mordomos capazes, o Senhor nos leva a muitos tipos diferentes de experiências, algumas extraordinárias e incomuns. Muitas dessas experiências não acontecem com outros, exceto ao Seu próprio povo. Existem características específicas sobre as experiências do povo de Deus que são incomuns. Outras pessoas no mundo podem passar por certos sofrimentos, que podem até se parecer com os sofrimentos dos crentes. Elas podem conhecer a dificuldade da pobreza, a luta para manter sua posição no mundo, etc. Exteriormente pode haver uma semelhança, mas, na realidade, no interior existirão elementos associados às experiências dos crentes, que lhes serão peculiares e não estarão associados às experiências do mundo. Eles terão fatores de caráter espiritual associados a eles, que são totalmente estranhos aos ímpios ou incrédulos. Creio que, além disso, passaremos por muitas coisas simplesmente por sermos o povo do Senhor. A explicação não é que teremos que enfrentar um inimigo quando tomarmos partido do Senhor, mas teremos ainda que levar em conta o fato de que o Senhor permitirá que o inimigo faça o que faz.
(1) Um Conhecimento Experimental da Necessidade
Qual a finalidade de tudo isso? Já mostramos que o que governa o Senhor em Seus tratos conosco, em Seus estranhos e misteriosos caminhos, Suas permissões tão únicas, é Seu desígnio de nos tornar mordomos.
Como essas coisas podem acontecer? Um mordomo deve conhecer as necessidades das pessoas a quem ele deve ministrar. Ele precisa conhecer não apenas suas necessidades, mas a natureza delas.
O homem de Deus não é apenas um oficial, como alguém tirado da multidão e colocado em um cargo, cuja tarefa diária pode ser aprendida através do estudo de um manual. Esse homem precisará desenvolver um relacionamento vivo com toda essa posição que irá assumir, e deverá conhecer, de maneira viva e experimental, da natureza das necessidades às quais ele precisará ministrar.
Deve haver uma compaixão de coração entre ele e aqueles a quem ele irá ministrar as riquezas de seu Mestre, gerada por meio de uma compreensão no interior daquela necessidade. Para tanto, ele deve conhecer as muitas necessidades, pois o que ele reparte com uma pessoa, não é o que a outra precisa.
Assim é o mordomo. Deve haver uma compreensão da necessidade, da situação, e um entendimento do coração, compaixão.
O Senhor lida conosco para que possamos ministrar de maneira adequada. Seus mordomos devem ser homens de entendimento, que possam tocar as várias necessidades, alcançar o coração, de sorte que os filhos do Senhor possam afirmar: ‘Isso se encaixa com meu problema! Toca a minha situação! Essa pessoa deve saber exatamente o que estou passando! Deve ter passado por isso! Quem falou a ele sobre mim?’
Sim, o Senhor sabe, e Ele nos conduz às experiências que nos tornarão mordomos de uma maneira viva. É isso que Ele está fazendo. O mordomo deve entender as necessidades universais e as muitas variedade delas, e as deve entender, de uma maneira que ninguém que apenas estuda tudo exteriormente o faz. A forma de o Senhor treinar Seus mordomos é os conduzindo através das situações. Quem seria mais capacitado para suprir uma necessidade, do que aquele que de fato a conheceu?
(2) Um Conhecimento Experimental do Recurso
O mordomo não apenas precisa compreender a natureza da necessidade a ser atendida, mas também deve ter um conhecimento equivalente dos recursos para supri-la. Ele deve conhecer a qualidade daquilo que está sob seus cuidados, sua natureza e valores. Aqui, novamente, nunca podemos conhecer os valores das coisas de Deus, a menos que passemos por experiências nas quais as colocamos à prova e as experimentamos. Ninguém realmente conhece o valor das coisas Divinas, se não experimentou em própria vida.
A mordomia do Evangelho é algo mais do que ver o Evangelho da graça de Deus no Novo Testamento como um sistema de verdade, como algo que abrange numa fórmula certos assuntos como: perdão de pecados, justificação pela fé e todo o outros elementos do evangelho; é algo mais do que isso.
A mordomia do Evangelho implica que o Evangelho se transforme no próprio ser do mordomo, e que o próprio mordomo se regozija nele. Um mordomo assim pode sair da casa do tesouro, conhecendo-a e afirmando: “Tenho algo aqui de tremendo valor e me regozijo nisso. Posso garantir que não estou lhe dando algo que simplesmente foi tomado e transmitido à parte da experiência. Não é resultado de meros estudos, algo coletei das coisas vindas de outras mentes, de comentários de outras “autoridades”. Estou renovado em meu conhecimento pessoal a respeito disso e desfruto dos seus benefícios”.
O que é verdade sobre o Evangelho é verdade sobre os mistérios de Deus. Essa é outra mordomia da qual Paulo fala. Somos levados aos mistérios de Deus, às profundezas, para descobrir esses segredos, para que possamos sair de lá com os tesouros oriundos das trevas. Mas que escuridão encaramos enquanto estamos ali! Nenhum tesouro parece abundar na escuridão! Tudo parece morte e desolação. Pobreza e fome parecem reinar. Entretanto, sair com os tesouros das trevas constitui em mordomia. Os mordomos são pessoas que passaram pelas trevas e descobriram tesouros. Eles têm os tesouros retirados das profundezas para passar adiante.
(3) Fidelidade
Quanto você tem para dispensar? Tem certeza de que está distribuindo o que tem? O Senhor não o guiou através daquela provação, daquelas trevas e aquela estranha experiência apenas por sua própria causa. O Senhor não lidou com você da forma como fez, para que você se calasse e pudesse apreciar o resultado. Ele fez isso para constituir você num mordomo. Se nós permitirmos que esse fato nos dirija nos dias de dificuldade e provação, isso nos ajudará. Devemos nos apegar ao fato de que a provação significa enriquecimento para o povo do Senhor. É um incremento no equipamento e qualificação para mordomia.
Há muitos que têm uma medida de riqueza espiritual e não a estão disponibilizando para outros. Outros não estão obtendo o benefício disso. Esses têm um conhecimento do Senhor que veio através da experiência e, se eles se unissem aos outros, esses outros poderiam receber parte do benefício obtido por meio dos tratos do Senhor, e seriam abençoados e enriquecidos.
Peça ao Senhor para libertá-lo em sua mordomia, dentro da sua medida. Não estamos falando de um serviço oficial e organizado para Deus, no qual devemos ministrar continuamente a outras pessoas, quer tenhamos os recursos para fazê-lo ou não. Tudo isso é falso e coloca pressão sobre nós; podemos de fato repugnar isso.
Simplesmente devemos ter em mente que essa é a maneira pela qual o Senhor cria contatos vivos. Os filhos de Deus podem atravessar o seu caminho com extrema necessidade, e podem estar buscando uma pessoa que pode ajudá-los. Eles clamaram ao Senhor para suprir essa necessidade e estão observando para ver como o Senhor responderá. Eles podem cruzar seu caminho, e você fala sobre todo tipo de coisas, e então eles seguem seu caminho, e você falhou em sua mordomia. Eles não receberam o que precisavam, o mordomo desapontou o Senhor e aqueles que Nele esperavam. Peçamos ao Senhor que nos liberte de qualquer amarração, para que possamos cumprir essa mordomia com fidelidade.
A Palavra do Senhor é: “o que se requer dos despenseiros é que cada um deles seja encontrado fiel” [1Co 4:2]. Isso não significa ser eloquente, intelectual ou ter uma personalidade forte, nenhuma dessas coisas! Qual é a sua concepção mental de um mordomo? Alguém que tem uma grande aptidão para falar, que não encontra nenhuma dificuldade nisso? Não! “O que se requer dos despenseiros é que cada um deles seja encontrado fiel”. Acredito que a maior virtude aos olhos de Deus é a fidelidade; ela abraça tudo. A fidelidade está no coração do próprio Deus.
Dê uma breve olhada neste mordomo – Paulo, o Apóstolo. “Porque Demas… me abandonou...” (2Tm 4:10); “… todos os da Ásia me abandonaram…” (2Tm 1:15). Olhe para ele, no momento em que tudo o que inspiraria sua fidelidade estava desmoronando. Paulo foi deixado praticamente sozinho, com mais inimigos do que nunca. E agora, a principal tragédia e sofrimento é que muitos dos seus inimigos eram aqueles de quem ele era mais próximo. Embora outrora houvesse inimigos, não era tão difícil, mas agora as pessoas por quem ele havia se gastado se tornaram seus inimigos.
Mas não vemos o pensamento, nem a indicação ou sugestão de desistência. A palavra do Senhor foi: “… Sê fiel até a morte …” Esse mordomo foi fiel. Não podemos dizer que, quando Paulo morreu, a situação exterior testemunhasse de um tremendo sucesso. Não parecia nada disso. A vida de Paulo não foi justificada até o fim. Ele morreu principalmente como um homem solitário, mas fiel: “..o que se requer dos despenseiros é que cada um deles seja encontrado fiel”. Mas, por mais difícil que tenha sido, o cumprimento desse requisito de ser encontrado fiel resultou no enriquecimento das outras pessoas. Paulo não está morto! Só espero que Paulo saiba de tudo o que surgiu a partir do seu ministério, o que ele representa para nós. O Senhor nos encontrou por meio do Seu servo, e nós nunca chegaremos às profundezas, e nem mesmo perto da profundidade da plenitude de Cristo que Paulo vislumbrou. Se vivermos duas ou três vezes a duração da nossa vida atual, ainda estaremos fazendo descobertas, e devemos isso à fidelidade de Paulo como mordomo. Isso vem acontecendo século após século.
Essa é uma mordomia fiel. Embora o mordomo possa ter sido temporariamente afastado da sua mordomia terrena, a sua mordomia ainda está viva. A fidelidade é sempre recompensada além dos nossos sonhos mais loucos. Que o Senhor nos sustente em fidelidade, mesmo que essa fidelidade possa às vezes nos envolver em uma aparência exterior de total fracasso. Que o Senhor nos torne em bons mordomos.
Tradução do capítulo 3 do livro “The More Excellent Ministry“, de T. Austin-Sparks,publicado no site www.austin-sparks.net.
T. Austin Sparks (1888-1971) nasceu em Londres e estudou na Inglaterra e na Escócia. Aos 25 anos, iniciou seu ministério pastoral, que perdurou por alguns anos, até que, depois de uma crise espiritual, o Senhor o direcionou a abandonar aquela forma de ministério, passando a segui-Lo integralmente naquilo que parecia ser “o melhor que Deus tinha para ele”. Sparks foi um homem peculiar, que priorizava os interesses do Senhor em vez do sucesso do seu próprio ministério. Sua preocupação não era atrair grandes multidões, mas ansiava desesperadamente por Cristo como a realidade de sua pregação. Por isso, suas mensagens eram frutos de sua visão e intensas experiências pessoais. Ele falava daquilo que vivenciava, e sofria dores de parto para que aquela visão se concretizasse primeiramente em sua própria vida. Pelo menos quatro linhas gerais podem ser percebidas em suas mensagens: (a) o grandioso Cristo celestial; (b) O propósito de Deus focado em ganhar uma expressão corporativa para Seu Filho; (c) a Igreja celestial – a base da operação de Deus na terra e (d) a Cruz – o único meio usado pelo Espírito para tornar as riquezas de Cristo parte da nossa experiência. Sparks também acreditava que os princípios espirituais precisavam ser estabelecidos por meio da experiência e do conflito, quando finalmente seriam interiorizados no crente, tornando-se parte de sua vida. Sparks desejava que aquilo que recebeu gratuitamente fosse também assim repartido, e não vendido com fins lucrativos, contanto que suas mensagens fossem reproduzidas palavra por palavra. Seu anseio era que aquilo que o Senhor havia lhe concedido pudesse servir de alimento e edificação para os seus irmãos. Suas mensagens são publicadas ainda hoje no site www.austin-sparks.net e seus livros são distribuídos gratuitamente pela Emmanuel Church.
“Nenhum homem é infalível e ninguém ainda ”obteve a perfeição”. Muitos homens piedosos precisaram se ajustar, seguindo um senso de necessidade, após Deus lhes haver concedido mais luz.” (De uma Carta do Editor publicada pela primeira vez na revista “A Witness and A Testimony“, julho-agosto de 1946).
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Muito encorajadora estas palavras! Graças ao Senhor por este serviço de amor!