T. Austin-Sparks (1888-1971)
“Por isso, santos irmãos, que participais da vocação celestial” (Hebreus 3:1).
“Porque nos temos tornado participantes de Cristo, se, de fato, guardarmos firme, até ao fim, a confiança que, desde o princípio, tivemos” (Hebreus 3:14).
Primeiramente gostaria de considerar brevemente uma palavra que é chave para nossa meditação e que aparece em ambos os versos citados: “participantes”. A palavra Grega traduzida dessa forma ocorre 5 vezes na carta aos Hebreus: 1:9; 3:1,14; 6:4; 12:8. Em Lucas 5:7, ela é traduzida como “companheiros”, e em outras traduções, “amigos” e “parceiros”, além de outras variações da mesma palavra ou raiz original.
Analisando cuidadosamente o seu sentido original, cheguei à conclusão de que a tradução mais adequada seria “companheiros”. Essa é a definição que usei em toda a minha consideração a seguir – “Companheiros de Cristo”; “Companheiros da vocação celestial”.
Essa ideia de “companheiros” segue ao longo de toda a Bíblia como o supremo pensamento de Deus relacionado ao homem e sua relação com Ele. Por trás de todo relacionamento geral e coletivo com o Senhor, há sempre o elemento de relacionamento pessoal. Pense em Abraão! Ele foi um grande servo do Senhor e O serviu com fidelidade. Mas o que foi dito a seu respeito de mais profundo foi que ele era amigo de Deus. Deus o chamou de “Meu amigo” (Isaías 41:8). Isso traz à tona essa ideia de “companheiro de Deus”.
Moisés foi um grande servo de Deus, e o Senhor frequentemente o chamou assim: “Moisés, Meu servo”. Mas sabemos que havia algo mais profundo em jogo: “Falava o SENHOR a Moisés face a face, como qualquer fala a seu amigo” (Êxodo 33:11). Houve um relacionamento muito íntimo entre Deus e Moisés. Na realidade, Moisés foi um “companheiro de Deus”.
E o que diremos a respeito de Davi? Temos muito a dizer, mas o adjetivo mais elevado que Deus lhe deu foi de um homem “segundo o Meu coração” (Atos 13:22). Esse é o sentido de um companheiro do Senhor.
Os Companheiros do Senhor Jesus
Quando veio à essa terra, o Senhor Jesus escolheu discípulos e apóstolos nessa base de companheirismo. Chame-os “discípulos”, se assim desejar – aqueles que entraram na escola de Cristo e foram ensinados por Ele. Chame-os “apóstolos”- aqueles que foram enviados por Ele. Mas o fato mais profundo no relacionamento deles com o Senhor foi que eles eram Seus companheiros. No final do período que passaram juntos, Jesus lhes disse: “Vós sois os que tendes permanecido comigo nas minhas tentações” (Lucas 22:28). Eles foram Seus companheiros em vida e Seus companheiros em sofrimento. Ele disse: “Vós sois meus amigos” (João 15:14).
Quando chegamos à Igreja, não encontramos uma instituição eclesiástica, oficial. Isso seria muito frio, formal e distante. Ao Se referir à Sua Igreja, o Senhor o faz sempre em termos de amor: “a igreja de Deus, a qual ele comprou com o seu próprio sangue” (Atos 20:28) – “Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela” (Efésios 5:25). Talvez precisemos restaurar essa ideia sobre a Igreja – ela é chamada para ser a “companheira de Cristo”. Seu relacionamento mais profundo com Ele é uma relação de coração – ser Seus companheiros em vida, na obra, no sofrimento e na glória.
O Propósito dos Companheiros
Depois de falarmos a respeito do que são esses companheiros, podemos seguir para o propósito dos companheiros. A Bíblia é um livro de propósitos, e esse propósito específico está por trás de todas as suas fases e estágios – na criação, predestinação e eleição das pessoas que Deus escolheu e de todos os Seus movimentos através da Sua Palavra. Vemos esse propósito oculto em todas as figuras e tipos, bem como nas três principais seções do Antigo Testamento – a do sacerdócio, do reinado e dos profetas. Essas três seções abrangem o Antigo Testamento, e esse propósito específico está escondido por trás de tudo descrito ali. Deus é revelado como um Deus de propósito, e cada movimento da Sua soberania é governado por tal propósito.
Qual é então esse propósito singular que está em toda a Bíblia? Tudo converge para o foco central de toda a Bíblia, a saber, o Filho de Deus. Em todas as coisas, Deus tem o Seu Filho em vista. O termo “todas as coisas” é bastante abrangente, mas indica que tudo está compreendido no Filho de Deus.
O primeiro ponto descrito na carta aos Hebreus está relacionado à todos os caminhos antigos e os métodos usados por Deus. Nos tempos antigos, Deus se moveu de diversas maneiras, mas no final dos tempos, Ele concentra tudo no Seu Filho. O Filho de Deus compreende ‘o todo’ do Antigo Testamento e ‘todos os Seu caminhos’ ali. Para enfatizar isso, essa Carta segue, em seus dois primeiros capítulos, trazendo as grandezas do Filho de Deus à vista.
Tendo apresentado e exaltado o Seu Filho, o Espírito Santo, por meio do escritor da epístola, segue o seguinte caminho (considerando que não existem quebras no texto original): “Por isso – por essa razão, devido a isso, devido ao propósito de Deus acerca do Seu Filho e a Sua infinita grandeza, acima de todos os outros – santos irmãos, vocês são chamados para um companheirismo com o Filho de Deus e companheirismo na vocação celestial Dele.”
Dois Princípios Relacionados ao Propósito Divino
Vamos então considerar esses dois princípios relacionados ao propósito Divino: (i) que Deus sempre trabalha em relação ao Seu propósito, e (ii) que esse propósito está centrado no Seu Filho. A Bíblia contém diversas “coisas”, como bênçãos, por exemplo. Temos as bênçãos de Deus. Vemos que Ele abençoa as pessoas, e também vemos os Seus julgamentos. Ele é um Deus de julgamento, e a Bíblia retrata os dois fatos. Mas nada disso – bênção, julgamentos ou qualquer coisa – é “algo” em si mesmo. Se Deus é o Deus da criação, se Ele escolhe os homens, se Ele usa coisas, abençoando ou julgando, Ele sempre o faz de acordo com um objeto, algo que está em vista. Ele criou todas as coisas para o Seu Filho. Esse é um fato definido na Bíblia.
Se Ele abençoou, foi porque aquilo estava em linha com os interesses do Seu Filho. Se desejamos a bênção do Senhor, precisamos estar atrelados ao Senhor Jesus e totalmente comprometidos com Ele. O Pai nunca vê nada separado do Senhor Jesus, e é Nele que a bênção é encontrada.
Deus sempre mantém Sua visão focada em Um Objeto, que é o Seu Filho. Deus nunca desperdiça nada. Ele não se interessa em “coisas” pequenas. As pequenas coisas se tornam grandiosas quando se relacionam com Seu Filho. Você se considera uma pessoa pequena, sem importância? Se você estiver ligado de forma vital ao Seu Filho, Deus te considera muito importante. Mas isso não é a “sua importância” propriamente dita, mas é a importância do Filho de Deus.
Ele olha para nós à luz do Seu Filho: ‘Quanto desse homem ou mulher responde ao Meu propósito em relação ao Meu Filho? Quanto do Meu Filho existe nesse homem ou mulher?‘
Deus é um Deus de propósito. Ele está sempre se movendo em relação a tal propósito, e prosseguindo, não importando o que aconteça, sempre atuando na base do Seu Senhorio Soberano, e nenhum homem pode impedi-Lo. Ele alcançará o Seu fim. É por isso que Ele nos deu o Livro de Apocalipse. Antes de chegarmos ao fim, Ele já nos disse como será. Seu propósito será realizado. Ainda assim, Ele sustenta outro princípio: Ele sempre conserva o homem num lugar de responsabilidade. Por quê? Porque Seu propósito em Seu Filho deve ser realizado no homem, no grande homem corporativo, no qual Cristo deve ter a plenitude. Cristo não realizará o propósito de Deus sozinho. Ele não trará na glória uma unidade isolada. Voltemos então ao nosso verso inicial: “Santos irmãos, que participais da vocação celestial… nos temos tornado participantes de Cristo, se, de fato, guardarmos firme…”
A Responsabilidade do Homem
Paulo diz que a igreja é a “a plenitude daquele que a tudo enche em todas as coisas” (Efésios 1:23). Assim, existe uma responsabilidade sobre o homem, e nenhum livro da Bíblia enfatiza mais esse fato do que a Epístola aos Hebreus. Nesse sentido, essa é uma das cartas mais terríveis da Bíblia. Por um lado, é algo extremamente glorioso, e por outro, muito terrível.
Se Deus toma um vaso em relação ao Seu propósito – seja um indivíduo ou um grupo de pessoas, como Israel – e esse vaso não responde à Sua vontade, Ele o deixa e busca outro. Ele chamará outro para tomar o lugar do anterior.
A maior instância dessa lição pode ser vista em Israel. Deus escolheu Israel para ser o vaso por meio do qual Ele iria trazer à luz o Seu Filho. Israel foi chamado e escolhido por Deus em relação ao Seu Filho e Seu propósito Nele. Mas o que Israel fez com o Filho de Deus? Eles O recusaram, assim como recusaram o propósito de Deus. Por isso, Deus os deixou de lado e seguiu adiante. Jesus disse: “O reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que lhe produza os respectivos frutos” (Mateus 21:43).
Esse é o próprio sentido da carta aos Hebreus. Ninguém pode dizer de Israel hoje: ‘Eles são os companheiros de Cristo’. Outrora eles foram “companheiros de Deus”, mas falharam.
Um Chamado Grandioso
Isso explica a maravilhosa Carta aos Hebreus. Essa é a Carta que demonstra o lugar e grandeza do Senhor Jesus. Ela demonstra a maravilha de ser chamado um companheiro de Cristo, e então deixa bem claro como é terrível falhar com o Senhor, para aqueles que foram chamados como Seus companheiros. Vemos: “como escaparemos nós, se negligenciarmos tão grande salvação?” (Hebreus 2:3). Você nunca compreenderá a expressão “tão grande salvação”, até que compreenda o que significa ser um companheiro de Cristo. Será que existe algo mais grandioso do que ser um companheiro de Cristo? Que maravilha pensarmos que somos chamados para sermos companheiros do Filho de Deus, quando quem Ele é, e tudo o que Deus propôs em relação a Ele! Isso é de fato uma grande salvação.
Todo o Novo Testamento é construído ao redor dessa palavra e dessa ideia dos companheiros de Cristo. Vemos Cristo primeiramente escolhendo Seus companheiros, e então Ele é visto lhes ensinando por palavras e obras. Depois Ele os testa e peneira. São verdadeiros companheiros ou estão associados a Ele apenas pelo que irão conseguir obter? Você pode ter muitos companheiros, se der a eles tudo o que desejarem receber de você. Mas o que acontece quando você não pode dar nada a eles, a não ser sofrimento e perseguição, e tudo parece ir contra os seus interesses naturais? Você só pode oferecer um lugar na casa do Pai! Ele os peneirou, os testou, em mais de uma ocasião vemos registrado: “muitos dos seus discípulos o abandonaram e já não andavam com ele” (João 6: 66).
Companheirismo é algo que é testado e peneirado pela adversidade. Se você tem um lote extra de testes e sofrimentos em seu relacionamento com Cristo, lembre-se de que Ele está buscando em nós companheiros bem próximos, em companheirismo com Ele mesmo, não apenas na Sua glória, mas nos Seus sofrimentos.
O relacionamento com Cristo é na base da comunhão. Unidade de vida, propósito, experiência, disciplina, morte, sepultamento, ressurreição, unção, e então finalmente, unidade com Ele em Sua glória celestial.
Jesus Continua Fazendo Sua Obra Espiritualmente
Precisamos compreender que Jesus está Se repetindo de uma forma espiritual nessa dispensação. Ao escrever o livro de Atos, Lucas iniciou com essas palavras: “Jesus começou a fazer e a ensinar” (Atos 1:1). Sua implicação era: ‘agora vou escrever a respeito do que Ele continua fazendo e ensinando. Esse é o mesmo Jesus’. Ele está fazendo a mesma obra e as mesmas coisas, mas com uma diferença: antes era por ilustração e de forma temporal. O significado que estava nas coisas está agora no que Ele está fazendo conosco, de uma maneira espiritual. Ele abriu fisicamente os olhos cegos? Ele agora está abrindo os olhos espirituais dos cegos, e isso é muito mais importante.
Esse mesmo Jesus continua fazendo a mesma obra em nós, repetindo Sua vida terrena de uma maneira espiritual. Você sente que gostaria de ter vivido com Ele naquele tempo na terra? Será que isso é o melhor que você pode imaginar? Deixe-me te dizer que você tem algo muito superior hoje! Aquele mesmo Jesus está conosco, mas em uma base muito mais maravilhosa do que estava naquela ocasião!
Somos chamados para sermos companheiros de Cristo, e companheiros da Sua vocação celestial. Seus tratos conosco, talvez sejam muito mais reais, porque são espirituais e eternos. Enquanto esteve na terra, Seus tratos eram apenas físicos e limitados àquele tempo. É algo bom cuidar dos corpos das pessoas e ajudá-las nessa vida, mas existe algo muito superior a isso. Essa vocação celestial, que é eterna, não passará quando não houver mais a obra e o tempo tiver acabado. “Por isso, santos irmãos, que participais da vocação celestial… Porque nos temos tornado participantes de Cristo, se, de fato, guardarmos firme…”.
Tradução de extratos do Capítulo 1 do Livro “The On-High Calling”, de T. Austin-Sparks.