O artigo “Face a Face” é uma tradução do capítulo 8 do livro “Face to Face“, de Jessie Penn-Lewis.
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Jessie Penn-Lewis (1851-1927)
“Uma vez dentro Moisés da tenda, descia a coluna de nuvem … e o SENHOR falava com Moisés … face a face, como qualquer fala a seu amigo” (Êxodo 33:9, 11).
Leia o post anterior.
Enquanto Moisés estava no monte, ocorreram no acampamento alguns eventos que tiraram dele a mais suprema entrega de sua vida. Se havia uma relação de uma coisa com a outra, não podemos afirmar, mas é depois dessa grande crise que lemos que “o Senhor falou com Moisés face a face, como qualquer fala a seu amigo”.
Quando o povo viu que Moisés, o homem a quem eles tinham confiado para comunicar com Deus, não havia retornado, eles se reuniram em torno de Arão e clamaram: “faze-nos deuses que vão adiante de nós; pois, quanto a este Moisés, o homem que nos tirou do Egito, não sabemos o que lhe terá sucedido” (Ex 32:1). A vida egípcia ainda estava forte neles. Os egípcios tinham símbolos exteriores dos deuses que adoravam, e assim seria com eles. Arão, temeroso e fraco, se rende ao clamor deles e lhes dá um substituto visível para Deus… e sob o nome de adoração a Jeová, aquele povo errante voltou ao Egito em seus corações e atos.
No monte, Deus diz a Moisés o que está acontecendo no acampamento, e então fala: “deixa-me, para que se acenda contra eles o meu furor, e eu os consuma; e de ti farei uma grande nação” (Êxodo 32:10). Mas Moisés conhecia o seu Deus! Ele tinha visto o que a fé podia fazer, e sua confiança estava no grande e compassivo coração Daquele que tinha forjado tão grandes feitos por eles. Na ousadia da fé, ele sustenta a Deus Sua palavra, dizendo: “Lembra-te… por ti mesmo tens jurado”, e ele prevaleceu com Deus.
Jeová disse: “Eu farei de ti uma grande nação”; mas glória ao custo de Israel era algo que Moisés não desejava. Seu objetivo era trazer o povo à terra prometida. Ele tinha suplicado, sofrido por eles, de forma que seu coração estava pleno com um intenso desejo de que eles obtivessem sua herança.
É impossível orar pelos outros e não ser consumido por um grande desejo de ser gasto a favor deles.
Moisés não poderia admitir, por nenhum momento, a ideia da glória para ele mesmo ou sua família, e deixar que essas almas, que foram ganhas com tanta dificuldade e mantidas com tanto sofrimento no caminho de Canaã, sofressem perda. Moisés “suplicou ao Senhor”(Êxodo 32:11), e sustentou diante Dele Sua palavra, como o resultado de que “se arrependeu o SENHOR do mal que dissera havia de fazer ao povo” [Êxodo 32:14], e Moisés se voltou e deixou a presença de Deus, sabendo que havia uma coisa a se fazer, e isso deveria ser feito rapidamente, antes que o julgamento de Deus se iniciasse sobre o pecado do povo.
Moisés saiu da tranquilidade da Santa Presença no monte para o acampamento lá em baixo. Em uma santa ira contra o pecado, ele tomou o bezerro de ouro, o queimou, e o tornou em pó. Arão implora pela compreensão de Moisés, e diz: “o povo é propenso para o mal”. Não importa para o que o povo é propenso, Moisés estava vindo da presença do Deus Santo, o que fez do pecado e da vergonha de Israel, em se voltar do Deus vivo para símbolos pagãos, se tornar tão vívidos diante dos seus olhos, que ele não tinha como ouvir desculpas.
Que noite aquela deve ter sido para Moisés, à medida em que ele ponderava a respeito dos eventos daquele dia! Ponderou e orou, até que a paixão desse anseio pelo povo pecador o conduziu a uma estupenda decisão. Ele não poderia imaginar que, depois de todo aquela dor de parto, Israel poderia perder sua herança e a presença de Deus.
Quando a manhã se inicia, ele diz ao povo: “Vós cometestes grande pecado; agora, porém, subirei ao SENHOR e, porventura, farei propiciação pelo vosso pecado”(Ex 32:30). Ele retorna ao monte. Passo a passo ele escala, nunca desviando de propósito, até que ele alcança a Presença e faz seu ousado pedido: “Agora, pois, perdoa-lhe o pecado; ou, se não, risca-me, peço-te, do livro que escreveste” (Êxodo 32:32).
Com efeito, ele oferece a si mesmo em sacrifício, por amor de Israel, cada recompensa ganha quando ele abriu mão dos prazeres e tesouros do Egito, quando ele fez sua escolha em relação à corte do Faraó. Ele tinha naquela ocasião escolhido o caminho da cruz, com a esperança de um ganho final, mas em comunhão íntima com Deus, ele entrou em uma atitude divina de sacrifício, onde toda a busca de coisas para si mesmo havia desvanecido.
Nos é dito que a comunhão é mais do que sociedade: é um amalgamar de espírito com espírito, de coração com coração, de forma que palavras não são necessárias, porque os dois são um.
Só é possível compreender as palavras de Moisés em conhecendo e compartilhando a atitude de Cristo que está por trás delas, porque elas falam de uma intensidade de entrega pessoal que poucos de nós tem conhecido. Aqueles que tem entrado nessas aflições por Cristo e por Sua Igreja sabem algo do que essas palavras representam, porque eles aprenderam em uma medida, como derramar suas almas na morte, em comunhão com Ele – não como que participando de sua expiação pelas nossas almas, mas em cumprimento a lei do sacrifício para que a vida flua para outros [Jo 12].
Falando com reverência e sabendo o coração de Deus como temos visto revelado no Senhor Jesus Cristo, Jeová deve ter sido profundamente tocado quando Ele viu Seu servo suplicando, porque lá atrás, nas eras da eternidade, o Cordeiro, morto desde a fundação do mundo ofereceu a Si mesmo ao Pai como expiação pelos pecados do povo [1 Pd 1:19,10; Ap 13:8].
Jeová estava mostrando a Moisés Seu plano para ensinar Israel o sentido do sacrifício pelo pecado. Ele tinha falado a ele dos tipos que iriam prefigurar ao mundo o Filho de Deus, que deveria ser oferecido em um lugar chamado Calvário, como o cumpridor de todos os tipos, como o perfeito e suficiente sacrifício pelos pecados de todo o mundo [João 5:46].
Assim como Moisés ouviu as direções de Deus sobre o altar de bronze e a grande necessidade de expiação, quando o pecado de Israel deveria ser tirado com o sangue de bois e cabritos, ele compreendeu, como nunca antes, o porquê de eles terem sido poupados do destruidor no Egito pelo sangue do cordeiro que foi morto. Ele viu o pecado do ponto de vista de Deus e a necessidade de expiação, e essa revelação penetrou tão profundamente em sua alma que, à medida que ele ponderava no grande pecado de Israel, o pensamento que penetrou em sua mente foi de que Deus poderia aceita-lo como um sacrifício e perdoar o povo.
Em todos os eventos, ele decidiu se identificar com Israel e sofrer com eles. Quão pouco Moisés sabia que ele estava tipificando o unigênito Filho de Deus que, manifestado na forma humana, Se identificou com os pecadores, e “Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Coríntios 5:21).
O Espírito divino tinha permeado tanto esse homem de Deus, que agora ele olha Israel do Seu ponto de vista, e é móvito com uma misericórdia inexprimível por eles. Em verdade, o mundo nunca será o mesmo com ele novamente, porque ele foi trazido em união com o próprio coração de Deus, e precisa necessariamente ir adiante, compartilhando Sua atitude de compaixão com os pecadores, enquanto que odiando o seu pecado.
Em resposta à petição de Moisés, o Senhor simplesmente o ordena que vá e conduza o povo para a terra. Sua oferta não poderia ser aceita, mas ele foi ouvido e a nação não foi rejeitada – apesar da inevitável consequência do pecado deles que se seguiria.
A partir desse tempo, a Moisés foi concedida uma comunhão mais íntima com Jeová do que antes. Ele tinha ido ao monte quando chamado, mas agora ele tinha livre acesso à imediata presença de Deus na “Tenda da Congregação”, separada para esse propósito e montada fora do arraial (Êxodo 33:7). Quando ele saia da Tenda, uma visão maravilhosa era vista do pilar de nuvem descendo e ficando na porta, enquanto dentro da tenda, “o Senhor falava com Moisés” e falava com Ele “face a face, como qualquer fala a seu amigo”. “Boca a boca falo com ele, claramente e não por enigmas”(Números 12:8).
Temos um relance de uma conversa nesse tempo entre Deus e Seu “amigo”, um relance nos descortinando a vida interior de Moisés à medida que progredia mais e mais em unidade com Deus.
Em todos os encontros anteriores, temos o visto na Presença a favor do povo: em Horebe, para receber sua comissão, então no Sinai, primeiro para aprender as várias leis, e depois, nos quarentas dias no topo, para conhecer o modelo do Tabernáculo, onde Deus iria habitar no meio de Israel.
Mas o véu é erguido para nos mostrar essa amizade para a qual ele foi trazido desde aquela grande entrega por amor ao povo. O único desejo de Moisés agora é: “Me faças saber neste momento o teu caminho, para que eu te conheça” (Êxodo 33:13). Ele passou além de todas as coisas para o Próprio Deus, e quando a promessa é dada, “A minha presença irá contigo” (vs 14). Moisés fica mais ousado e diz: “Rogo-te que me mostres a tua glória”(vs 18). Por meio das palavras do Senhor Jesus compreendemos o que Ele pediu, porque o Filho de Deus, quando na terra, descortinou os propósitos de Deus, como estavam em Seu coração desde a eternidade, e disse dos Seus redimidos: “Eu lhes tenho transmitido a glória que me tens dado, para que sejam um, como nós o somos … Pai, a minha vontade é que onde eu estou, estejam também comigo os que me deste, para que vejam a minha glória”(João 17:22-24).
Jeová responde a Moisés: “nenhum homem verá a minha face e viverá”(vs 20), e então prefigura o Seu plano, a forma pela qual Seus banidos serão restaurados a Ele. Como amaldiçoados, eles não podem vê-Lo e viver, mas, escondidos na fenda da Rocha – o lado ferido Daquele que na plenitude do tempo iria morrer para que eles pudessem morrer Nele, e nELE, passar para o lugar preparado para eles – ali eles irão vislumbrar a glória de Deus na face de Jesus Cristo, que é o reluzir da Sua glória e expressa imagem da Sua Pessoa [2 Co 4:6; Hb 1:3].
Depois da conversa da “Tenda da Congregação”, Moisés é comandado a se apresentar mais uma vez ao topo do monte, e o Senhor desceu e permaneceu com ele ali, proclamando Seu nome, dando a ele tal revelação do Seu caráter e graça, que Moisés rapidamente se dobrou à terra e O adorou.
Quarenta dias e quarenta noites Moisés gastou novamente no monte, e depois ele conta a Israel o que ocorreu durante essa seção prolongada de comunhão com Deus. “Prostrado estive perante o SENHOR, como dantes, quarenta dias e quarenta noites … por causa de todo o vosso pecado… também orei por Arão ao mesmo tempo”(Deuteronômio 9:18-20).
Quarenta dias de intercessão pelo povo, seguido por sua estupenda oferta para sofrer a favor deles; e quando ele retornou ao acampamento, sua face reluzia com a glória refletida, apesar dele não perceber isso. Essa glória era tão celestial, que Arão e o povo ficaram temerosos de se aproximar dele, até que ele os chamou e lhes falou como o fazia anteriormente; mas, aqueles que não conhecem o Senhor podem suportar tão pouco do reflexo da Sua luz, o que levou Moisés a descobriu que era necessário colocar um véu sobre sua face enquanto falava com eles. Verdadeiramente era a Presença que separava entre ele e seus companheiros, e sua dificuldade agora era fazer com que os outros estivessem à vontade com ele, porque, afinal de contas, ele era o “homem Moisés”!
Ele era velado aos homens, mas não para Deus, porque o véu era tirado quando Moisés entrava para falar com o Senhor, e recolocado quando ele se movia entre os homens. Que solidão, que isolamento isso representou para ele, porque ele não podia ter mais comunhão íntima com Jeová, sem que isso representasse uma separação dos outros. Isso é o que a comunhão “face a face” com Deus representa. Do lado de Deus, uma vida “com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do Senhor”, e “transformados, de glória em glória, na sua própria imagem” (2 Coríntios 3:18), ainda, pelo inconsciente, inevitável efeito da intimidade com Deus, velado para os outros e separado das coisas da terra, como “não vivendo no mundo”; velado sob a cobertura da vida mais comum de todas, “como desconhecidos e, entretanto, bem conhecidos; como se estivéssemos morrendo e, contudo, eis que vivemos; como castigados, porém não mortos”[2 Coríntios 6:9]. “Em tudo somos atribulados, porém não angustiados; perplexos, porém não desanimados … levando sempre no corpo o morrer de Jesus, para que também a sua vida se manifeste em nosso corpo” [2 Co 4:8-10].
Foi indicado que, a partir desse momento, o principal trabalho de Moisés foi comunicar ao povo a vontade de Deus, e está escrito que ele foi “mui manso, mais do que todos os homens que havia sobre a terra” (Números 12:3). Essa é a marca da vida celestial, e é o resultado do íntimo relacionamento com Deus. Jesus, o Santo Filho de Deus, disse de Si mesmo, “sou manso e humilde de coração” [Mateus 11:29]; e na mesma proporção que participarmos de Sua vida, e formos conformados com Sua imagem, vamos manifestar sua mansidão e espírito tranquilo tão precioso aos olhos de Deus.
A mansidão desse homem que viu Deus “face a face” reluz repetidamente na sua vida posteriormente. Suas dores e tribulações foram se tornando mais e mais severas por meio das próprias almas que lhe custaram tanto, e ele foi testando por todos os lados. Ele precisou aprender comunhão com o Deus longânimo, e suportar e sofrer com o povo até o fim.
Em cada prova que passou, o espírito celestial brilhou. A liberdade de Moisés da glória de si mesmo foi evidenciada em sua resposta a Josué – ciumento pelo seu líder – quando disse: “Tens tu ciúmes por mim? Tomara todo o povo do SENHOR fosse profeta” (Números 11:29). E seu silêncio quando Miriã e Arão falaram contra ele (Números 12) também mostra o espírito do Cordeiro.
Mas o véu é tirado dos seus sofrimentos quando, depois de tudo que ele passou por aquele povo, o evento que ele temia aconteceu, e Israel se voltou para o deserto quando estava na fronteira com a terra prometida. Mesmo enquanto Moisés estava com eles, alguns do povo de fato elegeram um capitão para os levarem de volta para o Egito e, mais uma vez, Deus ameaçou os destruir e ofereceu tornar Moisés o fundador de um povo escolhido. Se ele tivesse aceitado a oferta, não teria que passar os penosos anos que se seguiram suportando a nação rebelde. Mas novamente ele renuncia todos os pensamentos de interesse pessoal e deliberadamente escolhe participar do destino deles.
Por aproximadamente quarenta anos, eles vagaram pelo deserto, e seu líder muito provado estava com eles, até que no final ficou até mesmo doente em favor deles. Cansado com aquele grande e terrível deserto, e com incessantes murmurações e incredulidade do povo, ele “falou irrefletidamente” [Salmo 106:33]. Deus havia dito: “Falai à rocha”, mas na amargura de sua alma, Moisés esqueceu de andar suavemente com seu Deus. Ele feriu a rocha duas vezes e assim faltou em obedecer a Deus implicitamente [Números 20:8]. Deus não poderia passar por cima do menor lapso de desobediência de alguém que permaneceu em justiça diante do povo. O pecado deveria ser julgado, tanto em Moisés, como em Israel. Quanto maior o seu privilégio de conhecer a Deus “face a face”, maior o pecado na menor infidelidade – e então a palavra foi dada, “porquanto prevaricastes contra mim … pois me não santificastes no meio dos filhos de Israel … verás a terra defronte de ti, porém não entrarás nela” (Deuteronômio 32:51,52).
“Considerai, pois, a bondade e a severidade de Deus: para com os que caíram, severidade; mas, para contigo, a bondade de Deus, se nela permaneceres“ (Romanos 11:22). Não devemos nos ensoberbecer, mas temer.
Mais uma vez, Moisés sobe a montanha, o Monte de Pisga – e lá ele contempla a terra da promessa. Ele morreu ali e foi enterrado pelo Próprio Deus. Com cento e dez anos, não se lhe escureceram os olhos, nem se lhe abateu o vigor. Ele não estava esmagado e desgastado, apesar de todas as dores e sofrimentos desses anos no deserto, porque Deus tinha sido sua força.
Jessie Penn-Lewis (1851-1927) nasceu no País de Gales, em uma família metodista calvinista. Sempre teve uma constituição física frágil, estando constantemente muito doente. Penn-Lewis foi muito impactada pelo ministério de Evan H. Hopkins, quando lhe foi apresentado o caminho da vitória por meio da Cruz de Cristo. Ela tinha um forte encargo com a mensagem da identificação do crente com o Senhor na Cruz, para manifestar o poder de Sua morte e ressurreição. Sua contribuição foi grande no sentido de reavivar entre os crentes a verdade da vida interior e da mensagem da Cruz. Assim como Madame Guyon, Fénelon e outros místicos cristãos, ela enfatiza fortemente em seus escritos a necessidade de uma vida interior de oração e contemplação do Senhor Jesus, e uma experiência subjetiva da Cruz.
Jessie Penn-Lewis era casada, mas não teve filhos. Apesar de enfrentar diversos períodos de severas enfermidades, ela ministrou sua mensagem em vários países como Índia, Canadá, Rússia e Egito, pregou na Convenção de Keswick, iniciou a publicação da revista The Overcomer (O Vencedor), e publicou livros e artigos sobre diversos assuntos.
Penn-Lewis foi contemporânea de G. Campbell Morgan, F. B. Meyer, A.B. Simpson e T. Austin-Sparks. Em 1934, Watchman Nee afirmou que “durante os últimos anos, quase todas as mensagens comentadas entre os crentes espirituais têm sido ensinamentos de Jessie Penn-Lewis”.
Para conhecer mais a respeito do encargo e mensagem de Jessie Penn-Lewis, é possível ler ainda hoje edições da Revista O Vencedor. Os livros “Guerra contra os Santos” e “A Cruz, o caminho para o reino” foram publicados no Brasil pela Editora dos Clássicos.