O artigo “Incredulidade e perda” é uma tradução do capítulo 5 do livro “Face to Face“, de Jessie Penn-Lewis.
***
Jessie Penn-Lewis (1851-1927)
“Então, disse Moisés a Deus: Quem sou eu para ir a Faraó e tirar do Egito os filhos de Israel?… Que lhes direi?… Mas eis que não crerão, nem acudirão à minha voz” (Ex 3:11,13; 4:1).
Leia o post anterior aqui.
Que mudança em Moisés! Como ele estava preparado para ir quarenta anos atrás! Mas agora ele se retrai. “Eu? Quem sou eu?” Toda a auto-suficiência se foi. Será que esse era o homem que era poderoso em palavras e obras?
O diálogo entre Deus e Seu servo retraído se repete diversas vezes em muitos corações nos dias de hoje. Uma coisa era certa, a tarefa era estupenda! O que isso iria representar? O que Deus iria fazer com ele? Moisés olhou para os fardos de seus irmãos oprimidos, e também conhecida a tirania de Faraó e o que significava tê-lo como um inimigo. Ser enviado para libertar Israel! O rascunho que Deus desenhou como Seu plano parecia ser simplesmente impossível de realizar. Tirá-los do Egito para uma boa terra agora ocupada por outras nações! – e ele, um homem, sem recursos, sem influência, sem meios, sem colaboradores! Impossível!
Mas Deus pode fazer coisas impossíveis! Não importa a grandiosidade do esquema, se for Deus Quem o desenhou. Não importa quão instransponíveis parecerem as dificuldades, se Deus assumir a responsabilidade.
Moisés não se aventurou a questionar o esquema, mas ele questionou sua capacidade de tomar parte nele, então ele se retraiu com uma objeção após a outra. “Eu ir à Faraó?” Mas “Eu estarei contigo”, responde Jeová.
Um embaixador do Rei dos reis terá a autoridade do Mestre por trás de si. Moisés não seria enviado em sua própria capacidade pessoal, nem mesmo como um homem que outrora foi um príncipe, parte da realeza da terra. Deus permitiu que tempo suficiente se passasse, para que tudo isso desvanecesse. Ele não queria nenhuma influência terrena sobre o Seu mensageiro, nem poder pessoal de sua posição. Moisés precisava ir baseado apenas na autoridade e no poder de Deus.
Mas “quando eu vier aos filhos de Israel e lhes disser: …Deus… me enviou a vós outros; e eles me perguntarem: Qual é o seu nome? Que lhes direi?” (Ex 3:13).
O paciente Senhor teve muito trabalho com o homem retraído; mas Ele ternamente vem de encontro a cada um de seus temores, e responde a cada dificuldade que ele apresentou. Ele deveria dizer aos oprimidos Israelitas exatamente aquilo que Deus lhe disse – que o Deus de seus pais apareceu a ele e o enviou. A ele foi dito exatamente o que fazer; foi prometida uma capacidade de ouvir, e ele foi advertido de que os passos que ele foi ordenado a tomar não seriam bem-sucedidos inicialmente, mas Deus iria agir pelo Seu povo, e eventualmente eles sairiam, não vazios, como escravos roubando, mas sairiam do Egito aos olhos de todo o povo, na verdade apressados por eles, e cheios de despojos e presentes deles!
Qualquer coisa que Deus assume, Ele conduz regiamente diante de todos os homens. Israel estaria bem feliz em sair do jugo de seus opressores sob qualquer condição; mas quando Deus conduz Seu povo em frente, isso acontecerá em triunfo, por uma mão poderosa e um braço estendido.
Se nós, Seus filhos, quanto chegamos a situações complicadas, mesmo que por nossa própria insensatez e algumas vezes pelos nossos erros, apenas nos voltássemos e nos lançássemos para nosso Deus como Rei e Pai, Ele iria operar por nós, e nos conduziria para fora de nossos problemas, de forma segura e digna de um Rei.
Jeová lidou com duas das dificuldades de Moisés, mas ele ainda não estava satisfeito. Ele não pôde imaginar a si mesmo dentro do prospecto dessa grande realização. Ele tem memórias desagradáveis de um certo dia quando um desses próprios Hebreus, a quem Deus desejava enviá-lo, se voltou para ele e disse: “Quem o fez juiz sobre nós?”
O adversário mantém essas memórias vivas nas almas sensíveis, e ele sabe como trazê-las de volta em momentos críticos. A flecha se cravou bem fundo na mente do impetuoso e sensível homem, cuja tentativa de vingar e defender seus irmãos oprimidos lhe custou tão caro.
Quanto maior o custo e sacrifício em ir em frente para ajudar a outros, maior a ferida quando a ajuda é rejeitada. Apenas as profundamente sensíveis naturezas podem compreender o sofrimento que Moisés deve ter experimentado quando suas esperanças foram arremessadas ao chão e ele fugiu do Egito em terror.
Ser enviado de volta ao povo que o rejeitou! Será que a memória amarga do Egípcio morto, e o indigno esconder do corpo na areia ainda surgia na mente de Moisés? Será que ele estaria temeroso que o insulto fosse repetido, e que o terror voltasse, e ele tivesse que fugir novamente? Quão envergonhado ele estaria ao pensar sobre isso. Na vista de Deus seus motivos eram puros, mas ele nunca pôde se perdoar por sua insensatez.
Como o diabo assombra os filhos de Deus com memórias como essas! Paulo, no final de sua vida, não podia esquecer-se de que um dia perseguiu a Igreja de Deus, e que um dia de fato votou pela morte de um inocente. “É Deus quem os justifica. Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu ou, antes, quem ressuscitou” (Rm 8:33,34). “É Cristo Jesus quem morreu” é a resposta para Paulo e para todo aquele que se esconde sob o sangue do Cordeiro que foi imolado.
Moisés fala de novo: “Mas eis que não crerão … pois dirão: O SENHOR não te apareceu” (Ex 4:1). Moisés supôs uma vez que eles iriam compreender que Deus iria livrá-los por meio dele, mas o erro que ele havia cometido o levou a temer o risco de desapontamento agora. Suposições não são suficientes; devemos ter certezas… e Moisés vai descobrir que é muito diferente quando Deus realmente o envia.
Em uma lição figurada, Deus o ensina que Ele apenas precisa de um bordão para cumprir Seus propósitos. Ele ordena a Moisés que lance o bordão que está em suas mãos sobre o chão, e ele se torna uma serpente. Ele o ordena que pegue a serpente pela cauda, e ela se torna um bordão.
Uma preparação inconsciente para o Egito! Ele terá que encarar mágicos, e ele deve primeiro ter provado o poder de Deus, de forma que possa ter uma calma destemida para encará-los e conquista-los.
Mais uma vez encaramos a necessidade de “fé” como a coisa que vai ligar a insignificância com a Onipotência: “Se tiverdes fé… nada vos será impossível” [Mt 17:20], e mais uma vez, “Tende fé em Deus; porque em verdade vos afirmo que, se alguém disser a este monte: Ergue-te … e não duvidar no seu coração, … assim será com ele” (Mc 11:22-23). Moisés não deve ficar com nenhuma sombra de dúvida em seu coração, de que as coisas que ele “disser” sob o comando de Deus acontecerão.
Deus vai ter o mesmo trabalho hoje para treinar Seus filhos para ter uma absoluta fé inabalável na arma colocada em suas mãos: a espada do Espírito – a Palavra de Deus, que é poderosa para derrubar fortalezas.
“Então, disse Moisés ao SENHOR: Ah! Senhor! Eu nunca fui eloquente, nem outrora, nem depois que falaste a teu servo; pois sou pesado de boca e pesado de língua” (Êx 4:10).
Agora tudo está exposto! Primeiro, “Quem sou eu?“ Eu não tenho posição, influência, autoridade! Segundo, “Eles não crerão em mim“. Eles não creram uma vez, e não estou disposto a tentar de novo. E, em terceiro lugar, “Eu não sou eloquente”. Talvez Moisés tivesse dito para si mesmo, “Quarenta anos no deserto tiraram meu fluxo de linguagem. Outrora era poderoso em palavras mas não agora; me tornei um homem de poucas palavras, pesado de língua e de palavras”.
Se Moisés apenas soubesse que essa era sua melhor preparação! Eloquência é mais frequentemente um embaraço do que uma vantagem. Quando Deus fala, Ele fala pouco, mas o que Ele fala, acontece. Com Ele, falar é fazer, e uma palavra vai cumprir Seu propósito. Quando Deus deseja um homem para ser Sua boca, Ele algumas vezes escolhe aquele que não é eloquente, e não tem uma linguagem própria, de forma que Deus possa falar por ele.
Paulo claramente compreendeu isso quando escreveu: “não com sabedoria de palavra, para que se não anule a cruz de Cristo” (1 Co 1:17). Ai de nós! A cruz se torna sem nenhum efeito por meio da linguagem floreada pela qual é revestida tantas vezes. Deus nos perdoe por muitas vezes coroarmos a cruz com flores – até mesmo flores de linguagem, assim como de pensamento. Ela precisa de sua intensa realidade para cumprir sua obra, assim como em todo o seu terrível poder ela balançou Jerusalém naquele dia quando o horror de grandes trevas estava sobre a terra.
A resposta do Senhor a Moisés foi decisiva. Ele faz a boca de Moisés. Isso era suficiente. O Senhor que fez a sua boca poderia abri-la e ensiná-lo o que dizer. “Vá, e Eu serei com sua boca”. Isso conclui a questão. Cada dificuldade é encarada – posição, povo, poder, linguagem – o que mais é necessário?
Mas o coração de Moisés desmaia! Sim, isso tudo é verdade: o caminho está claro; não existe uma dúvida sobre o chamado, o mandamento, o equipamento, o poder; ele tem apenas que se entregar a Deus, como aquele bordão em sua mão, e Deus fará o resto. Não existe nada faltando agora, mas faltava seu livre e alegre consentimento para ser o instrumento de Deus. Deus espera, mas seu coração falha com Ele. Moisés não consegue encarar a obra. O Senhor tem sido tão gracioso em ouvir os seus temores, que ele não ousa recusar – então, com quase um suspiro de terror, ele diz: “Ah! Senhor! Envia aquele que hás de enviar, menos a mim” (Êx 4:13); o que equivale a dizer: “O Senhor deve ter Seu caminho, Senhor, e se eu precisar ir, bem – preferiria não ir!” – um consentimento indelicado e sem vontade.
Deus não pode cumprir Seus mais profundos propósitos por meio de nós, a não ser que haja uma cooperação de coração e sem hesitação para com Ele, porque um instrumento sem o desejo não pode exercitar a “fé” necessária, e fé é a capacidade, ou o canal, por meio do qual o poder divino opera. A relutância não atrapalha se houver uma completa resposta da vontade. Moisés não se recusou a ir; ele concordou em se submeter à vontade de Deus, mas sua fé não podia alcançar o ponto onde Deus poderia usar sua boca e dar a ele poder para expressão oral.
Está escrito que “se acendeu a ira do Senhor contra Moisés” (Êx 4:14). Ele estava entristecido, e podemos nos aventurar a dizer, desapontado? Ele havia intencionado fazer tudo por meio de Moisés, mas ele se encolheu e aceitou indelicadamente o serviço para o qual foi chamado, o que tornou necessário que Ele usasse outro vaso com ele. Se Moisés não tinha fé que Deus poderia dar a ele as palavras necessárias, então Deus não poderia fazer dele Sua boca.
O Deus Poderoso fica impotente diante da incredulidade, e Ele pode ser limitado por nossa falta de fé nos Seus propósitos de graça relacionados a nós.
A determinação de dar Arão como boca a Moisés não foi uma mudança inconsistente ou desrespeitosa. A ação foi governada pela lei de que entrega e fé são as únicas condições pelas quais Deus pode trabalhar por meio de vasos humanos.
Arão foi dado a Moisés para ser seu porta-voz, ou, como o próprio Senhor expressou “ele te será por boca”. Moisés perdeu sua oportunidade de provar o que Deus podia fazer. Ele tomou, podemos dizer, o segundo melhor de Deus, ao invés do Seu melhor! Ele se entregou aos seus medos, ao invés de crer que Deus podia fazer por ele o “impossível”. Moisés precisou depois lamentar seu coração desmaiado nesse dia, porque ele arrumou para si mesmo, por meio de Arão, dificuldades que ele nunca teria se não tivesse escolhido esse caminho.
Não estamos fazendo a mesma coisa dia após dia? Não vamos nunca olhar para o lado humano, e por causa da falha do nosso coração, escolher o segundo melhor de Deus.
Se vamos nos encolher em relação a algum propósito de Deus, Ele vai nos trazer de volta a isso mais cedo ou mais tarde. Muitos anos depois, quando Arão morreu, Moisés já tinha aprendido a lição, e sua língua estava liberada. No final de sua vida, ele proferiu um “cântico” de despedida para os ouvidos de Israel (Dt 32:1-43) – talvez como uma preparação para o “novo cântico” que iria em breve cantar, “o cântico de Moisés… e o cântico do Cordeiro”(Ap 15:3).
A entrevista acabou. Moisés agora vai a Jetro e dá a eles a notícia de que precisa retornar ao Egito. Ele não fala nada a respeito do que se passou na montanha. Almas que tiveram uma entrevista como essa não estão dispostas a falar muito delas; nem Deus Se revela muito dessa maneira, até que a alma tenha aprendido a andar silenciosamente com Ele.
Leia o próximo post aqui.
Jessie Penn-Lewis (1851-1927) nasceu no País de Gales, em uma família metodista calvinista. Sempre teve uma constituição física frágil, estando constantemente muito doente. Penn-Lewis foi muito impactada pelo ministério de Evan H. Hopkins, quando lhe foi apresentado o caminho da vitória por meio da Cruz de Cristo. Ela tinha um forte encargo com a mensagem da identificação do crente com o Senhor na Cruz, para manifestar o poder de Sua morte e ressurreição. Sua contribuição foi grande no sentido de reavivar entre os crentes a verdade da vida interior e da mensagem da Cruz. Assim como Madame Guyon, Fénelon e outros místicos cristãos, ela enfatiza fortemente em seus escritos a necessidade de uma vida interior de oração e contemplação do Senhor Jesus, e uma experiência subjetiva da Cruz.
Jessie Penn-Lewis era casada, mas não teve filhos. Apesar de enfrentar diversos períodos de severas enfermidades, ela ministrou sua mensagem em vários países como Índia, Canadá, Rússia e Egito, pregou na Convenção de Keswick, iniciou a publicação da revista The Overcomer (O Vencedor), e publicou livros e artigos sobre diversos assuntos.
Penn-Lewis foi contemporânea de G. Campbell Morgan, F. B. Meyer, A.B. Simpson e T. Austin-Sparks. Em 1934, Watchman Nee afirmou que “durante os últimos anos, quase todas as mensagens comentadas entre os crentes espirituais têm sido ensinamentos de Jessie Penn-Lewis”.
Para conhecer mais a respeito do encargo e mensagem de Jessie Penn-Lewis, é possível ler ainda hoje edições da Revista O Vencedor. Os livros “Guerra contra os Santos” e “A Cruz, o caminho para o reino” foram publicados no Brasil pela Editora dos Clássicos.