Harry Foster
“Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o SENHOR pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus” (Miquéias 6:8).
“Eis a história de Noé. Noé era homem justo e íntegro entre os seus contemporâneos; Noé andava com Deus” (Gênesis 6:9).
Noé, Andando e Trabalhando (Gn 5:28 a 9:29)
A Palavra nos diz que Noé é o segundo homem que andou com Deus e, ao contrário de Enoque, conhecemos bastante sua história pessoal. Em certo sentido, ele foi um profeta e também um pregador, mas a maior parte do seu tempo foi ocupada com trabalhos manuais. Ele foi carpinteiro, guardião de animais e agricultor.
Na linguagem evangélica moderna, Noé provavelmente não seria descrito como um ‘obreiro de tempo integral’, mas certamente dedicou todo o seu tempo ao trabalho consciente e fez tudo “como ao Senhor”. Ele viveu pela fé (como todos devemos fazer) e serviu aos propósitos de Deus de maneira notável. Se Enoque é um exemplo de homem que andava com Deus em seus assuntos domésticos, então Noé nos mostra como andar devemos com Deus em nossa vida cotidiana. Ele era um homem muito ocupado, mas sempre tinha tempo para Deus.
A graça o encontrou. As Escrituras explicitam o contrário (Gn 6:8), mas é realmente a mesma coisa. A graça garantiu que qualquer mistura que pudesse ter entrado na raça humana durante o misterioso casamento entre os filhos de Deus e as filhas dos homens (Gn 6:1-4), não contaminasse o sangue de Noé, pois ele era considerado “justo e íntegro entre os seus contemporâneos” (Gn 6:9). Sua experiência na graça o levou a caminhar com Deus, mas, no sentido mais verdadeiro da palavra, não foi ele que escolheu Deus, foi Deus que o escolheu para servi-Lo e caminhar com Ele.
Todos os crentes têm o direito de reivindicar que, pela graça, tenham uma caminhada na companhia de Deus preparada para eles antes mesmo de darem o primeiro passo de fé. Mas a fé deve se apropriar daquilo que a graça provê. O primeiro passo na peregrinação espiritual deve ser seguido por um novo passo, e mais outro, sustentando a caminhada com Deus em todas as circunstâncias da vida. Não bastava homem ter um nome especial, encontrar graça aos olhos do Senhor, ser justificado e receber um atestado de saúde espiritual; ele precisou continuar dando passos deliberados de fé e obediência – para andar com Deus.
Qualquer que tenha sido a ajuda que ele possa ter tido na efetiva construção da Arca, ainda assim a Bíblia o designou como o construtor (Gn 6:14). Podemos considerar que Enoque foi o primeiro em uma longa fila de “Marias” que se sentaram aos pés do Senhor, mas é certo que Noé é o protótipo da “Marta” do Novo Testamento, a Marta corrigida e santificada que assumiu o trabalho indicado com um mínimo de confusão e um máximo de devoção.
Havia três diferentes esferas de atividade nas quais Noé andava com seu Deus:
Como um Artesão
Na verdade, não é claramente afirmado que a Arca levou 120 anos para ser construída, mas há indicações suficientes para mostrar que essa deve ter sido uma tarefa árdua e desgastante. Alguns homens projetam navios ou edifícios, deixando a cargo de outros a realização da tarefa de construção. Noé não tinha escritório de planejamento, nem prancheta. Ele foi o trabalhador que recebeu o desenho e as especificações diretamente do céu e trabalhou de acordo. Isso pode parecer romântico, mas obviamente envolveu atenção cuidadosa e uma obra minuciosa, uma vez que sua própria segurança dependia de fazer um bom trabalho para Deus.
Onde ele conseguiu a madeira especificada e o betume de proteção, não nos é informado, mas não é preciso muita imaginação para perceber quanto trabalho duro Noé precisou aplicar naquela arca salvadora. O tamanho da tarefa teria assustado muitos homens; o trabalho pesado teria oprimido a maioria de nós; mas o maior milagre de todos foi que, enquanto ele trabalhava, Noé ainda tinha tempo e força para se dedicar ao cultivo de uma caminhada mais próxima com Deus. Às vezes, treinamentos e escolas bíblicas podem fazer parte do chamado de Deus para nós, mas o que se deve perceber é que eles nunca garantirão a proximidade de Deus. De uma maneira ou de outra, muitos de nós imaginam erroneamente que precisamos nos libertar das reivindicações diárias do lar e da profissão, para podermos passar mais tempo com Deus. Toda a concepção de recusar as vocações comuns para se aproximar do Senhor é contrariada pelo mandamento do Novo Testamento: “Irmãos, cada um permaneça diante de Deus naquilo em que foi chamado” (1Co 7:24).
Noé deve ter sido engenhoso com as mãos. Quem lhe deu essa habilidade? Ele deve ter tido uma força considerável. Quem lhe deu essa força? Aquele que os deu a ele, o chamou para passar anos trabalhando como carpinteiro, e ele nos mostra que o que chamamos de ‘trabalho secular’, longe de atrapalhar a vida espiritual de um homem, pode ser a esfera na qual ele se aproximará diariamente seu Deus e trará glória ao Seu nome. No devido tempo, o Divino Filho tornou-se carpinteiro em Nazaré e, quando deixou esse cargo para o ministério público, recebeu a forte aprovação do Pai pelos Seus dezoito anos de trabalho manual.
Se por um ‘obreiro em tempo integral’ consideramos o fato de estarmos separados, de uma maneira especial, para um trabalho específico para Deus, como Noé estava quando entrou na Arca, essa é uma descrição válida. Mas, se sugerimos que até aquele momento Noé não havia sido um ‘obreiro em tempo integral’, tenho certeza de que ele e sua esposa discordariam fortemente. Noé poderia argumentar que todos os que andam com Deus (mesmo em uma carpintaria) são obreiros em tempo integral! É verdade que nos é dito que Noé foi “um pregador da justiça” [2Pe 2:5], mas quantas palavras ele realmente disse, nós não sabemos. Sua vida foi um sermão, sua oficina era seu púlpito e, embora fora de seu próprio círculo ninguém prestasse atenção a seus avisos, ele teve a alegria de ver toda a sua família encontrando a salvação, como resultado de sua vida prática de fazer a vontade de Deus.
Se andarmos com Deus e assim trabalharmos para Ele, podemos ter certeza de que Ele também trabalhará para nós. Esse tipo de comunhão é uma via de mão dupla. A “Operação Arca” foi um sucesso completo. Deus se envolveu tanto com Noé que, no devido tempo, ele influenciou os animais a se aproximarem e entrarem na Arca, e fez com que eles vivessem harmoniosamente juntos, fechando Ele mesmo a porta atrás dele – presumivelmente selando-a para que fosse à prova d’água. Literalmente, Noé sabia o que era “trabalhar junto com Deus”.
Como Protetor de Animais
É difícil descrever o segundo trabalho no qual Noé se engajou, mas certamente não foi menos oneroso que seu emprego anterior. Dado o elemento milagroso na reunião dos animais e sua coexistência pacífica em locais tão confinados, ainda assim havia uma quantidade enorme de trabalho duro da parte dele. Pense no empilhamento e armazenamento dos alimentos, e sua subsequente distribuição. E as viagens diárias para cima e para baixo da escada do navio de três andares, enquanto a comida era transportada e distribuída diariamente? Pode um homem andar com Deus quando está transportando fardos de comida? Ele pode andar com Deus enquanto trabalha subindo e descendo aquelas escadas intermináveis? Talvez ele possa andar com Deus nos espaços abertos, mas como pode fazê-lo em um zoológico flutuante confinado, lotado e as vezes, agitado?
Nós não sabemos. Nós, no entanto, conhecemos as experiências de labuta que, de certa forma, correspondem à labuta diária de Noé, e muitos de nós sabemos quão próximos podemos estar de Deus, independente das desvantagens e demandas. Durante todos esses meses, tudo deve ter parecido irritante e quase irrelevante para o próprio Noé, mas sabemos que todo o propósito de Deus para a raça humana dependia da fidelidade daquele homem. Noé pode nunca ter percebido que as hostes do céu estavam olhando com espanto santo para aquela arca lotada, e devem ter sido movidas a uma nova adoração a Deus, que pode conceder tanta graça aos homens. Lembremos que em nossas provas nós também “nos tornamos espetáculo… tanto a anjos, como a homens” (1Co 4:9), mesmo que possamos não estar fazendo tão sensacional, além de subir e descer escadas designadas por Deus.
Como um Agricultor
Adão foi informado: “No suor do rosto comerás o teu pão” e alguém poderia imaginar que a comissão de Noé de “ser fecundo…e encher a terra” (Gn 9:1) indicava que ainda havia muito trabalho duro ser feito. Parece improvável que ele tenha achado que essa terceira fase do trabalho de sua vida seria menos árdua do que as duas anteriores. A partir das Escrituras que se seguem, vemos que ele e seus filhos obtiveram um completo sucesso em seu novo trabalho. Temos a impressão de que esse trabalho em particular como lavrador era um novo empreendimento para o patriarca.
Quando ele viveu no mundo pré-diluviano da impiedade, ele pode ter imaginado em como seria mais fácil andar com Deus se as circunstâncias pudessem mudar, para que ele se encontrasse em um novo mundo com alianças de arco-íris e altares com ofertas de cheiro suave. Bem, se ele considerava tais teorias, agora tinha a chance de prová-las e descobrir como eram falsas, pois foi nessa terceira, e a mais favorável fase de sua vida, que ele fracassou. “Bebendo do vinho, embriagou-se…” (Gn 9:21). Talvez tenha sido devido à sua ignorância; ele pode não ter conhecido o efeito do suco de uva fermentado. Mas, mesmo se dermos essa desculpa a ele, ainda temos que concluir que de alguma forma Noé perdeu aquele contato íntimo com Deus que o havia guiado tão infalivelmente em momentos passados em meio ao desconhecido.
Podemos até culpar Cam por sua grosseria e louvar os outros dois irmãos por seu comportamento correto, mas não podemos nem por um momento olhar para um homem indecentemente embriagado e sugerir que ele está andando com Deus. Qualquer medida de sensibilidade ao Seu Companheiro Divino o teria advertido quando ele estava correndo o risco de beber demais.
Por que essa história final foi incluída nas Escrituras? Não teria sido mais gentil suprimi-la e nos deixar uma imagem sem manchas desse homem de Deus? Grande parte das verdades sobre todos nós é suprimida por nosso Deus bondoso, mas certas coisas são tornadas públicas para o benefício de outros.
Nesse caso, certamente Deus deseja enfatizar para nós que em qualquer ponto de nossa peregrinação cristã, não é difícil sair da sintonia com Ele, e que esses perigos e possibilidades não diminuem com a idade ou com a experiência.
Um veredicto final das Escrituras ignora esse momento de fracasso, sem dúvida porque sempre há perdão e purificação para o homem que anda na luz, nos informando que Noé “se tornou herdeiro da justiça que vem da fé” (Hb 11:7). Em certo sentido, Noé herdou o mundo pós-diluviano material, no qual estabeleceu seu altar para Deus.
A Bíblia, no entanto, considera coisas materiais como sendo de importância relativamente pequena. O que importa é a herança espiritual recebida pela graça. Foi dada pela graça, mas demandava por uma apropriação pela fé. O Senhor Jesus elogiou o servo que é fiel naquilo que é mínimo, prometendo riquezas verdadeiras àqueles que são fiéis nos assuntos materiais.
O serviço de Noé não foi de maneira alguma pequeno. Cada uma de suas três tarefas foi de tremenda importância. No entanto, a construção de arcas, o bem-estar animal e o desenvolvimento agrícola, em qualquer escala, são muito pequenos em comparação com a recompensa espiritual e o destino espiritual deste homem de Deus. Talvez seja possível repetir mais uma vez, porém, que seu destino espiritual foi tornado possível por sua constância de obediência e fé nos assuntos materiais.
Um Homem de Descanso
Dizem-nos que o nome de Noé significa ”Descanso”. Isso parece apontar para o convite de Cristo para que tomemos Seu jugo sobre nós e aprendamos a descansar enquanto o fazemos (Mt 11:28). Podemos destacar três características desse serviço repousante de Noé:
i. Sensibilidade
Noé viveu em um mundo impressionante. “Naquele tempo havia gigantes na terra… estes foram valentes, varões de renome, na antiguidade” (Gn 6:4). Era assim que eles pareciam sob o ponto de vista do homem, mas Deus os via corruptos e violentos. Foi assim que Noé também os viu, pois, andando com Deus, aprendeu a ter discernimento e sensibilidade espirituais. Se alguma vez tal discriminação foi necessária entre os cristãos, isso certamente ocorre nos nossos dias. É uma tragédia quando o povo de Deus tolera e até admira a sociedade que a Bíblia chama de “mundo”, ficando cega para o fato de que o que eles valorizam é abominação aos olhos de Deus. Noé não tinha ilusões sobre os “gigantes” ou sobre o “renome”; ele era sensível às tristezas de Seu companheiro Divino.
O mundo de Noé parecia que ia continuar para sempre. As pessoas “comiam, bebiam, casavam e davam-se em casamento” até quando chegou o fim (Lc 17:27). Como pôde somente Noé ter visto o que estava por vir enquanto o resto estava cego? Como é que essas atividades consideradas razoáveis ocupam tanto as mentes e perspectivas de muitos cristãos nos dias de hoje? A resposta para essas perguntas está contida em uma frase do Novo Testamento: “amor ao mundo”. Noé não amava o mundo nesse sentido – ele o condenou. E ele fez isso porque olhou além do visível para as verdades e valores perenes do reino eterno de Deus.
ii. Obediência
O verdadeiro descanso do coração chega apenas aos obedientes. Noé, antes de tudo, aceitou a comissão geral dada a ele por Deus, trabalhando a seguir nos detalhes de construção e nas instruções relativas ao tempo e movimentos. Pode ser que as instruções para levar sete dos animais limpos e não dois (Gn 7:2-3) tenha sido uma ordem de última hora, pois nada havia sido dito sobre isso até a semana em que ele entrou na Arca. A vida é assim. Novas coisas surgem – ou algumas coisas podem parecer novas para nós – assim o servo obediente deve ser ajustável debaixo da mão de Deus. Todo o procedimento de Noé foi pioneiro; ninguém jamais fez as coisas que ele foi chamado a fazer. De uma maneira menos espetacular, isso é uma verdade para todo homem de fé, transformando a obediência não em uma questão de obedecer a regras, mas de ouvir a Deus. Se Noé realmente se mudou para aquela Arca com o coração descansado, ele foi realmente um milagre da graça.
iii. Paciência
Vista apenas a partir desta virtude, a história de Noé é ainda mais notável. Tomando como certa a longa paciência de seus trabalhos, pense em suas experiências dentro da Arca, pois ele teve que esperar naquele navio fechado por sete longos dias, enquanto nem uma gota de chuva caía do lado de fora. Dizem-nos que “as águas durante cento e cinquenta dias predominaram sobre a terra” (Gn 7:24). Isso, sem dúvida, era algo esperado por Noé e, embora devesse parecer um longo tempo, poderia razoavelmente ser considerado parte do plano. O mesmo aconteceu com o gradual escoamento das águas e os vários períodos de teste por meio do corvo e da pomba. Mas observe o último momento de teste, quando Noé olhou para uma terra seca no primeiro dia do mês (Gn 8:13) e ainda precisou esperar o mandamento Divino para desembarcar, que não ocorreu até o vigésimo sétimo dia do segundo mês. Ele entrou na Arca sete dias antes do necessário, porque Deus lhe disse para fazê-lo, e depois ficou quase dois meses depois do que lhe pareceu necessário, e só se moveu quando recebeu a palavra do Senhor. Esse é um exemplo mais impressionante de obediência e paciência, trabalhando juntos. Não se engane, o homem que planeja andar com Deus tem muitas lições de paciência para aprender.
Nosso próximo personagem será Abraão – o homem que literalmente andou muitos quilômetros em sua constante peregrinação com Deus. Ao contrário dele, Noé nos fala da pura disciplina do trabalho diário, mantendo-se no trabalho, subindo e descendo as escadas e aguardando silenciosamente os comandos Divinos para se mover. “Tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como para o Senhor e não para homens, cientes de que recebereis do Senhor a recompensa da herança”(Cl 3:23,24).
Texto homônimo de Harry Foster, publicado na Revista “Toward The Mark”, Vol 11, no. 3, Mai-Jun de 1982.