Sedento ou transbordante é a tradução livre do artigo “Thirsting or Overflowing”, de C. A. Coates.
“Como todos os rios são reunidos no oceano, que é o lugar de encontro de todas as águas no mundo, assim Cristo é o oceano no qual todos os verdadeiros deleites e prazeres se encontram”. (John Flavel – Christ, Altogether Lovely).
Sumário
Dois Salmos, duas experiências espirituais
Sedento ou transbordante?
O grande impedimento para o desfrute transbordante do Senhor
O retrato do salmista no Salmo 42
Duas grandes perguntas
Três caminhos usados pelo Senhor para mudar nossa centralidade
A experiência transbordante do Salmo 45
A Pessoa diante de nós
Dois salmos, duas experiências espirituais
“Como suspira a corça pelas correntes das águas, assim, por ti, ó Deus, suspira a minha alma. A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo; quando irei e me verei perante a face de Deus?” (Salmo 42:1,2).
“De boas palavras transborda o meu coração. Ao Rei consagro o que compus; a minha língua é como a pena de habilidoso escritor. Tu és o mais formoso dos filhos dos homens; nos teus lábios se extravasou a graça; por isso, Deus te abençoou para sempre” (Salmo 45:1,2).
Leitura: Samo 42 e Salmo 45
Não tenho dúvidas de que esses Salmos nos dão um panorama muito claro da experiência e alegria que o remanescente de Israel vivenciará num dia que ainda está por vir. Vemos isso na experiência de Israel: um povo privado de sua herança e tirado de sua posição de privilégio [sedentos], que depois vai desfrutar de alegria no retorno Àquele que fora rejeitado, o Messias, quando encontrarão nEle sua suprema satisfação, na antecipação de Seu reino [transbordantes].
Entretanto, meu objetivo agora é compartilhar a respeito das duas experiências distintas da alma retratadas nesses dois Salmos: o Salmo 42 e o Salmo 45. A diferença entre elas é impressionante!
Sedento ou transbordante?
Em um dos Salmos vemos a alma “sedenta”, no outro, ela está “transbordando”. O Salmo 42 equivale ao “se alguém tem sede”, enquanto o Salmo 45 responde a “quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva” (Jo 7:37,38).
Essa é uma pergunta que devemos fazer a nós mesmos: estou “com sede” ou “transbordando”? Qual desses dois Salmos descreve melhor a experiência da minha alma?
É uma verdadeira benção ter Cristo diante de nós, satisfazendo plenamente nosso coração. Sim, existe uma satisfação como aquela que o Senhor descreveu à mulher no poço em Sicar, quando disse: “aquele, porém, que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede” (Jo 4:14). Saber que existe uma satisfação como essa, de natureza tão maravilhosa, e que ela pode ser nossa, deveria ser a alegria do coração provado e desapontado!
Assim, enquanto andamos nesse deserto, poderemos passar dos murmúrios no coração e nos lábios para o desfrute de um coração transbordante das glórias, perfeições e do amor de Cristo. A partir dessa experiência, nossos lábios se abrirão e ribeiros de frescor e alegria fluirão, como vemos no Salmo 45.
Tenho certeza que essa é uma ambição geral, o desfrute contínuo dessa abençoada satisfação. Aquele que é nascido de Deus possui esse desejo instintivamente e conta com o direcionamento do Espírito Santo nesse sentido. Acredito que cada uma dessas experiências possam ser aprofundadas em nossas almas. Digo isso porque não existe um caminho para essa bênção sem dificuldades e oposições, e sem necessidade de exercício [espiritual] de nossa parte.
Parece muito fácil e é tão simples dizer: ‘você não deve se ocupar consigo mesmo, precisa se ocupar com Cristo’, mas nem sempre é tão fácil assim praticar esse conselho.
Algumas das mais agudas angústias espirituais que já presenciei foram vivenciadas por almas que estavam ansiosas para se “ocuparem com Cristo”, e cuja grande tristeza era que, apesar de devotarem muita oração e esforço nesse sentido, tinham a dolorosa consciência de que permaneciam ‘ocupadas consigo mesmas’.
O grande impedimento para o desfrute transbordante do Senhor
“Ah meu precioso Senhor enfurecido ,
Por nos amar, nos fustiga;
Abatido, mas auxiliador;
Certamente farei o mesmo.
Murmurarei, mas louvarei;
Em meio à lágrimas, aceitarei:
E em todos os meus dias agridoces
Lamentarei e amarei”.
— George Herbert (tradução livre, “Bitter-sweet”).
É necessário aprender a identificar o que é o ego, e esse exercício deve ser vivenciado na experiência. Entretanto, é um imenso encorajamento saber que Deus nos tomou para Si com vistas a nos libertar e introduzir nossos corações dentro dessa bendita consciência de nossa associação com Cristo. Quisera Deus que estivéssemos mais ansiosos em adentrar no propósito do Seu amor, porque se existir mesmo que um pequeno desejo de nossa parte, Ele pode conceder uma grande resposta.
No Salmo 42 vemos uma alma em absoluta sinceridade:
“Como suspira a corça pelas correntes das águas, assim, por ti, ó Deus, suspira a minha alma” [vs 1].
Se essa é a linguagem do seu coração, existe uma grande bênção reservada para aqueles que por ela passam. Quando crentes estão sendo postos de cabeça para baixo, revirados de dentro para fora, ficam suscetíveis ao desencorajamento e suas almas se “inquietam”. Mas, mesmo em meio a esse exercício, Deus nos encoraja, levando-nos a saber que Ele nos tomou para Si, trazendo-nos para a esfera de uma bênção inconcebível. “Espera em Deus”, disse o Salmista para sua alma, “pois ainda o louvarei, a ele, meu auxílio e Deus meu” [vs 5,11].
Precisamos passar por essa experiência, porque é longa a jornada até o ponto onde Cristo será tudo e o ego não será nada. Deus deve conduzir o ego ao nada e, apesar da carne ser capaz de fazer muitas coisas quando o assunto é adição ou multiplicação, ela rejeita fortemente tudo que envolve subtração e redução. A carne jamais tolerará ser reduzida à nada.
Consequentemente, os longos, sombrios e dolorosos anos gastos pelos crentes em “ocupação consigo mesmos”, refletem a triste realidade na qual eles se arrastam, em passos lentos, durante seu progresso espiritual. Passo a passo, a auto-suficiência e o senso de auto-importância precisam ser atingidos e reduzidos, até que finalmente o crente seja trazido ao fim de si mesmo.
Devemos ter firmemente claro em nossas mentes o fato de que o grande impedimento de Cristo em nossas almas é o “ego”.
Seja esse ego bom ou mau, carnal ou legalista, mundano ou religioso, se Cristo não for tudo para nós, e se nossas almas não estiverem em transbordante satisfação pela consciente associação com Ele, então de fato é o ego que está diante de nós, dentro de alguma de suas mais variadas formas.
No Salmo 42, vemos que foi permitido ao Salmista passar por circunstâncias que o reduziram bastante. Não estou querendo sugerir que aqui encontramos a plena exposição da carne. Isso não ocorrerá enquanto não se chegar até a cruz. Mas vemos o Salmista reduzido ao extremo, sendo trazido ao nada em relação àquilo que ele era. Esse é o ponto de partida para a bênção do Salmo 45, onde Cristo é tudo e satisfaz plenamente o coração.
Existem muitos caminhos pelos quais a alma aprende a respeito da inutilidade do ego. Nenhuma pessoa poderia se converter, sem antes aprender algo a respeito do que ela mesma é na sua carne. O novo convertido, com seus desejos por santidade e o anseio por Cristo sendo forjados pelo Espírito, se encontra numa escola onde aprende muitas lições dessa natureza.
Mas talvez nenhum caminho possa ser mais humilhante – ou mais eficaz, se essa experiência for passada junto com Deus – do que aquele trazido diante de nós nesse Salmo [42].
O retrato do Salmista no Salmo 42
“Aquele que te ama junto com outra coisa, ama-Te muito pouco; pois não tama tal coisa por amor de Ti”. (Agostinho de Hipona, Confissões).
Não vemos no salmista aquela sede de um recentemente convicto pecador, nem de alguém que nunca provou que o Senhor é gracioso. Nesse salmo vemos a sede da alma que perdeu aquilo que outrora desfrutava. O salmista olha para trás e recorda as estações de santa alegria do passado.
“Lembro-me destas coisas — e dentro de mim se me derrama a alma —, de como passava eu com a multidão de povo e os guiava em procissão à Casa de Deus, entre gritos de alegria e louvor, multidão em festa” [vs 4].
Se você recebeu “a palavra da verdade, o evangelho da sua salvação” e foi assim levado a conhecer o Senhor Jesus como seu ressurreto e triunfante Salvador, estou certo de que conheceu o que é desfrutar de uma grande alegria em sua alma.
Quando você viu que seus pecados foram todos afastados e que Deus lhe imputou justiça – justiça na medida e expressão do Cristo ressurreto — então entrou na paz com Deus por meio do Senhor Jesus Cristo, recebendo o Espírito, que derramou o amor de Deus em seu coração.
Ouso dizer que muitos podem se lembrar da profunda alegria que encheu seus corações quando o poder e preciosidade do evangelho chegou até eles. Mas com isso não me refiro ao despertar da consciência, nem ao alívio e segurança com a qual muitos se contentam, porque nenhuma dessas coisas traz consigo a alegria da salvação de Deus.
Falo do momento quando o Cristo Ressurreto é realmente apreendido como a medida e expressão de nossa justiça, e como nosso direito para permanecer no favor de Deus.
Isso nos concede suprema alegria. Isso não poderia ser diferente porque a partir esse momento mediremos tudo a partir de Cristo. Fomos alegremente tirados por completo para fora de nós mesmos, tanto para a justiça, como pelo direito de permanecer no favor de Deus. Cantamos com triunfo a respeito de Seu amor, exultamos em Sua graça e, em alguma medida, mesmo que ainda tímida, “nos gloriamos em Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo” [Rm 5:11].
Como nossos encontros pareciam reluzentes, e isso porque nós mesmos estávamos reluzindo. Como os filhos de Deus nos atraíam, porque olhávamos para eles à luz da graça que havíamos acabado de experimentar por nós mesmos. Estávamos com eles “entre gritos de alegria e louvor” [vs 4].
Mas não é verdade que, para alguns corações onde existiu a alegria da salvação de Deus, esse “primeiro amor” arrebatador passou e deixou um “vazio doloroso”? Hoje eles estão sedentos, não mais transbordantes. Alguns tem uma ávida sede, porque têm esperança e fé em Deus de que Ele tem a resposta para o anseio de suas almas.
Outros talvez tenham uma sede mais desesperada, porque nem os anos de exercício [espiritual] parecem não tê-los trazido mais perto da libertação que tanto anelavam.
Entretanto, uma grande parte dos crentes acata a presente condição como algo inevitável, aceitando as coisas como são e confortando a si mesmos pensando que serão muito felizes depois, no céu. Nesse caso, a sede deles torna-se tão fraca, que dificilmente podemos enquadrá-la nesse contexto a que me refiro nesse momento.
Duas Grandes Perguntas
Vamos então considerar duas questões que naturalmente se relacionam a esse assunto da sede e do transbordar:
- Será que é absolutamente necessário que alguém passe por uma experiência desse tipo, depois que encontra a paz?
- Por que tal experiência se faz necessária?
Respondendo à primeira pergunta, algumas almas passam por um processo bem mais profundo de auto-conhecimento antes de desfrutar da paz [com Deus] do que outras.
(…) Em resposta à segunda pergunta, podemos afirmar que nossos corações têm uma tendência insistente de estabelecer o ego no centro. Mesmo quando não fazemos do ego objeto de gratificação carnal ou exaltação religiosa, por termos nos convertido à graça de Deus, podemos ainda assim, nos tornar no centro das bênçãos que a graça de Deus conferiu.
Todos podemos nos recordar de como isso aconteceu conosco, no início de nossa caminhada. Nós falávamos e pensávamos muito a respeito de nossas bênçãos, sobre o que recebemos e o que Deus fez por nós. Não estou, de maneira nenhuma, me objetando a isso, por ser algo muito natural na infância [espiritual] da alma.
Alegra nosso coração ouvir quando o novo convertido discorre sobre as bênçãos que recebeu, e ver sua alegria decorrente delas. Entretanto, podemos ver, com frequência, como ele está envolvendo todas essas bênçãos da graça ao redor de si, e temos certeza de que ainda aprenderá algumas lições que farão com que parte do brilho delas perca seu apelo.
Ele precisará aprender que pobre miserável ele é em sua carne, e que seu coração precisa ser conduzido para um novo centro. Nada pode ser mais desagradável para uma mente espiritual do que ouvir uma pessoa que professa estar dando um testemunho Cristão e inicia e termina tudo ao redor de si mesma.
Por mais natural que seja para uma alma recém convertida falar a respeito de si mesma, essa é uma característica muito decepcionante em alguém que professa conhecer o Senhor por algum tempo.
É para mudar isso, com vistas a conduzir o coração à um centro totalmente novo, que essa experiência que estamos nos referindo se faz necessária para nossas almas. Deus entra em cena para nos separar da nossa centralidade natural; para que Ele possa ligar nossas afeições com outra Pessoa: Cristo. Ele irá torná-Lo TUDO para os nossos corações, de forma que possamos conhecer nossa associação com Ele, que se torna então na alegria profunda e duradoura de nossas almas.
Essa é a demanda por libertação, e este é o bendito propósito.
Nos onze versos do Salmo 42, as palavras “Eu”, “meu” e “mim” ocorrem com muita frequência, além do uso da expressão “minha alma” pelo Salmista.
Ele está completamente ocupado consigo mesmo, mas não está satisfeito, pois está com sede de Deus.
Por mais triste que seja essa condição, ainda é dez mil vezes melhor do que a complacência e auto-satisfação de Laodicéia. Laodicéia, que caracteriza a Cristandade de nossos dias, é aquilo que devemos temer acima de qualquer outra coisa. A auto-suficiência é como um véu sobre o coração, que nos cega para tudo aquilo que é de Deus.
Três caminhos usados pelo Senhor para mudar nossa centralidade
“Lembro-me, portanto, de ti, nas terras do Jordão, e no monte Hermom, e no outeiro de Mizar” (verso 6).
Os três lugares mencionados no verso acima sugerem os três caminhos pelos quais o ego é reduzido à nada, na vida do crente:
(1) Pelo exercício interior.
(2) Pelas provas no deserto.
(3) Pelas disciplinas especiais de Deus.
Vamos olhar rapidamente para cada um deles:
(1) O caminho do exercício interior, as terras do Jordão
Na última parte de Romanos 7 encontramos a experiência de alguém que, por meio da graça, se deleita na lei de Deus no seu homem interior e está ansiosamente buscando fazer a Sua vontade.
Entretanto, ele descobre uma outra lei em seus membros, a lei do pecado, e se encontra indefeso em seu cativeiro. Esse homem se torna dolorosamente consciente do pecado que habita nele e finalmente conclui de que nele, ou seja, na sua carne, não há nada além de pecado – ele não encontra nela bem algum.
Ele descobre isso por meio da lei – por meio de seus esforços para realizar a vontade de Deus – de forma que aquilo que foi ordenado para sua vida, se torna como que morte para ele. Ele é conduzido à morte.
A morte é aquela condição onde nada provém de Deus. Se estou verdadeiramente consciente de que o bem não habita em mim, sou levado à morte, à “terra do Jordão”.
Paulo chegou a esse ponto num período curto de tempo, porque era fervoroso em sua fé. Ele aprendeu, em três dias, a lição que frequentemente levamos uma vida inteira para aprender. Somos demorados na caminhada, porque somos pouco zelosos a esse respeito. Mas essa experiência é um exercício interior do nosso coração.
Antes de ter essa revelação, a vida exterior de Paulo era a mais exemplar. Esse é um exercício interior no qual o caráter do pecado na carne é descortinado diante de nossos olhos.
(2) O caminho das provas no deserto, o monte Hermon
O objeto de todas as provas e sofrimentos do deserto foi, como descrito em Deuteronômio 8:2, humilhar, provar, e levar o povo de Israel a saber o que estava em seu coração, se guardariam ou não os mandamentos de Deus.
Deus nos conduz por uma caminho penoso e acidentado, (como do Hermon, que também significa “acidentado”) para que nossa perversidade e orgulho possam ser revelados diante de nós.
Deus nos ama, por isso não irá permitir que sejamos enganados quanto ao nosso verdadeiro caráter em nossa carne. O Senhor nos conduz a circunstâncias que trarão nosso caráter à luz. Nenhum de nós pode escapar desse teste e desse peneiramento. À medida que nosso verdadeiro caráter for trazido à luz, nós seremos afligimos, ficaremos desgastados e murmuraremos.
Como é incômodo ser sempre trazido àquelas ocasiões que trazem à luz o que está dentro de nossos corações! Se apenas pudéssemos tomar um caminho onde pudéssemos nos isentar delas com credibilidade, como seria diferente! Se as coisas acontecessem conforme desejamos, como poderíamos seguir bem e felizes! Sim, e como nos tornaríamos extremamente satisfeitos conosco mesmos!
Mas Deus trará nosso interior à luz, e Ele nos levará a cruzar o território dos Hermonitas, até que nosso coração esteja em amargura ao ponto de dizer: “Por que Deus me coloca em circunstâncias assim? Por que Ele não torna as coisas mais fáceis? Por que sempre acontece alguma coisa para derrubar meus esforços para ser bom, e para tornar infrutíferos todos os meus desejos de ser santo? Se Deus ordenasse as coisas de forma diferente, minha vida não seria essa desprezível derrota que vejo agora”.
Será que seu coração alguma vez já proferiu essas palavras? Você sabe o que isso representa? Ora, você está colocando a culpa do seu pecado sobre Deus, mas ele é uma consequência da nossa inimizade com o inimigo, da mordida da serpente.
Você já experimentou a bondade e misericórdia de Deus de milhares de maneiras diferentes e, ainda assim, seu coração é capaz de sugerir que aquilo que Ele está ordenando para você é a causa de todas as suas falhas. Que fontes de inimizade contra Deus brotam da mente carnal!
(3) O caminho das disciplinas especiais de Deus, o Outeiro de Mizar
O “outeiro de Mizar” (pequeno monte) pode representar qualquer disciplina especial de Deus por meio da qual seremos tornados conscientes de nossa pequenez e fraqueza.
Quando Paulo chegou ao terceiro céu, a ele foi dado um espinho na carne, um mensageiro de Satanás para o esbofetear, e ele nos diz porque esse espinho foi dado a ele: “a fim de que não me exalte” [2 Co 12:7]. Esse foi seu “outeiro de Mizar”.
Deus permitiu que satanás agisse a carne de Paulo por meio de um sofrimento físico, para que ele ficasse consciente de nada além de fraqueza em si mesmo. Você pode dizer: “Isso deve ser uma experiência terrível”. Bem, Paulo não foi um homem miserável, pelo contrário, era extremamente feliz. Ele disse: “De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo. Pelo que sinto prazer nas fraquezas… Porque, quando sou fraco, então, é que sou forte” [vs 9,10]. Ele estava feliz por ter toda a sua força reduzida a nada, para que pudesse experimentar da suficiência da graça de Deus e da força de Cristo.
Dentre todas essas três formas de redução do ego, considero que as duas primeiras tem caráter instrutivo, enquanto a terceira tem a função de nos proteger.
O exercício interior de Romanos 7 e a prova do deserto devem nos ensinar o que é o pecado na carne, e o que está, de fato, no nosso coração. A disciplina especial de Deus, como vimos no espinho na carne de Paulo, visa nos proteger das tendências irremediáveis da carne. Esse último exercício espiritual sempre será necessário e continuará existindo, de uma forma ou de outra, até o fim de nossa peregrinação.
É bom para nós chegar ao nosso fim e ao fundo do poço em relação a nós mesmos, porque é quando chegamos a esse ponto com Deus que encontramos a libertação.
Paulo logo a alcançou: “Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?” [Rm 7:24], declarando: “Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor” [vs 25].
Os filhos de Israel, mordidos pelas serpentes e trazidos à morte, encontraram o caminho da vida aberto para eles ao contemplarem a serpente de bronze. Quando verdadeiramente abominamos a nós mesmos, estamos preparados para nos regozijarmos no bendito fato de que no nosso velho homem foi crucificado com Cristo – que o pecado na carne foi condenado quando Ele morreu, e que toda a nossa história na carne se encerrou ali diante de Deus.
Esse é o nosso direito: sermos livres. Tenho agora esse direito, que a justiça seja realizada em mim, por causa da morte de Cristo.
Para me preparar para isso, preciso aprender sobre essa necessidade da morte na minha própria experiência, mas a morte de Cristo é o meu título e direito para ser livre. É pela apropriação de Sua morte que alcanço liberdade e vida; foi aquela morte que me separou de tudo que estava em Adão.
“Estou crucificado com Cristo”. Estou livre de mim mesmo, a fim de ter Cristo diante de mim e aprender como estou associado a Ele em uma nova criação.
A Experiência do Transbordar no salmo 45
Numa palavra, passo da experiência do Salmo 42 para o Salmo 45.
A mudança é muito impressionante. Não temos mais “eu”, “meu”, “me”; mas “Tu”, “teus”, “te”. A alma encontrou um Objeto e um Centro completamente novo, chegou ao Centro de Deus.
Os antigos astrônomos consideravam os movimentos dos corpos celestes quase inexplicáveis, porque olhavam para a terra como o centro do universo. Quando uma mente corajosa e livre viajou para o espaço e encontrou ali um novo centro, então a harmonia e a ordem passaram a reinar onde tudo antes parecia confusão.
Enquanto a alma estava centrada em si mesma, não podia se familiarizar ou progredir nos pensamentos e propósitos de Deus. Mas, quando Cristo toma Seu lugar de direito em nossas almas, começamos a apreender das maravilhosas profundidades e perfeição desses pensamentos e propósitos.
Assim, seremos capazes de deixar o ego para trás e penetrar na atmosfera do amor Divino.
O Salmo 45 é chamado “Cântico de Amor” e tem esse caráter do início ao fim. Não existe nesse Salmo uma palavra sequer relacionada aos feitos do Senhor. Nele, o coração está envolvido com Sua Pessoa.
O amor pensa mais a respeito do Doador do a respeito de Seus dons, reflete mais sobre o próprio amor, do que na obra por ele realizada. É quando a Pessoa de Cristo está assim, diante do coração, que as afeições começam o borbulhar e a arder, como aconteceu com aqueles discípulos no caminho de Emaús, quando aquele Estranho lhes falava “coisas a respeito de si mesmo”.
Então, verdadeiramente, o coração passa a estar inclinado a um bom assunto, absorvido na contemplação dAquele que é completamente Amável.
O ego já é conhecido e já foi considerado inútil, e outra Pessoa está agora diante da alma, eclipsando tudo mais.
A Pessoa diante de nós
Quatro grandes e preciosos fatos relacionados Àquela Pessoa surgem diante do nosso coração:
“Tu és o mais formoso dos filhos dos homens”
Apenas o crente pode ver atratividade e beleza em Jesus. Para o homem natural, Barrabás é mais amável que Jesus. Não que ele deseje que Barrabás invada sua casa ou bata sua carteira, mas ele compreende Barrabás, enquanto não consegue compreender Jesus.
As bem-aventuranças (Mateus 5:3-10) nos dão um retrato dAquele que é “mais formoso que os filhos dos homens”. Pobre em espírito, um Pranteador nesse mundo de pecado e aflição, Manso, com fome e sede de justiça, Misericordioso, Puro de coração, Pacificador, Aquele perseguido por causa da justiça – esses são traços de Sua beleza.
O homem natural diz: “Essas coisas são pobres, de aparência simples. Um homem com tal caráter não é bom para esse mundo”. O homem que não vindica nada para si mesmo, porque sente que Deus não tem lugar aqui, que suporta a injúria e o mau sem murmurar, e cujo desejo insaciável é fazer a vontade de Deus, embora isso implique em nada além de perseguição e sofrimento, é visto pelo mundo com desprezo.
Onde as consciências sentirem o poder de Seu testemunho, Ele será definitivamente odiado.
“Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens” [Isaías 53:3].
Cristo foi justamente o oposto do homem ideal no conceito do mundo. O padrão idealizado pelo mundo é um homem que, por meio de um gênio brilhante, personalidade dominante e perseverança indomável assegura sua posição, riqueza ou fama. Aquele que se faz grande aos olhos dos homens é o herói do mundo, e temo que os Cristãos sejam frequentemente enganados pelo brilho da fama e das aclamações dos aplausos humanos, admirando homens que são o oposto do manso e humilde Jesus.
Oh, que possamos ser mantidos no secreto da presença de Deus, para conhecer o que Ele aprecia em um homem!
É uma prova do imenso favor de Deus por nós se, na avaliação de nosso coração, Cristo for “o mais formoso dos filhos dos homens”.
É fácil cantar hinos, usar as mais preciosas expressões das Escrituras de maneira sentimental, mas é outra coisa quando nossos corações realmente encontram descanso e satisfação nas perfeições morais de Cristo. É abençoado perceber nosso coração sendo movido, desfrutando de algo do êxtase de uma Noiva ao descrevê-Lo – iniciando com “o mais distinguido entre dez mil”, e concluindo com “ele é totalmente desejável” (Cântico dos Cânticos 5:10-16).
“Nos teus lábios se extravasou a graça”
Houve Alguém em Quem, e por meio de Quem toda a graça de Deus pôde se expressar.
O Filho de Deus tomou o lugar de perfeita dependência como um Vaso dessa graça e, nesse lugar de dependência, o Senhor Deus deu a Ele a língua do Erudito, para que Ele pudesse dizer boa palavra ao cansado (Is 50:4).
Bem poderiam os Nazarenos terem se maravilhado com as graciosas palavras que procederam de Seus lábios. Aqueles que foram enviados para O prender confessaram: “Jamais alguém falou como este homem” [Jo 7:46].
O evangelista Lucas O apresentou de forma singela, descortinando Seu bendito caráter de Ministro da graça, e que pleno e inigualável é esse registro! As sinagogas em Nazaré e Cafarnaum, o mar da Galiléia, a casa de Levi, os campos, os portões da cidade de Naim, a casa do Fariseu e todas as cenas desse santo ministério até o Calvário têm o sua doce peculiaridade para descrever a graça que foi derramada de Seus lábios, fluindo em plenitude através deles de forma a derrubar todas as resistências. As próprias objeções e oposição da incredulidade e do farisaísmo só serviram para evidenciar isso de forma mais completa, como se a tentativa de impedir o fluxo de um rio o levasse a transbordar para suas ribanceiras.
A graça de Deus se expressou aqui por meio de um Homem.
Deus encontrou a satisfação de Seu coração em ter Alguém aqui na terra que não apenas podia, mas que cumpriu, em totalidade e perfeição, a responsabilidade do homem, enquanto era a plena expressão da graça divina, e isso também em perfeita dependência.
Havia apenas uma Pessoa que poderia trazer e expressar a graça de Deus num mundo de pecado, e Ele o fez com perfeição. Bendito para sempre seja Seu sagrado Nome!
A “espada” e as “setas” (versos 3, 5)
A espada e as setas nos dão testemunho da rejeição dAquele em cujos lábios a graça foi derramada. Esse também será o julgamento que aguarda Seus inimigos – julgamento tornado inevitável, pelo fato dos homens terem recusado a graça de Deus, e terem rejeitado Aquele por meio de Quem tudo isso foi trazido.
Esse mundo pagou a Cristo mau por bem, e ódio como contrapartida de Seu amor. Agora a cena que vemos é Sua rejeição – logo veremos a cena do vitorioso julgamento, onde Deus colocará Seus inimigos debaixo de Seus pés [Sl 110:1].
Mas hoje Cristo é desonrado e deserdado aqui. Ele foi cortado e não tinha nada. Ele foi contado como nada, como algo sem valor pelos homens, que não viram nEle beleza que os agradasse [Is 53:2].
“Por isso, Deus te abençoou para sempre” (verso 2).
Mas, num impressionante contraste, lemos: “por isso, Deus te abençoou para sempre” (verso 2).
Cada passo do caminho de humilde e devotado amor encontrou essa resposta. Não aqui na terra, verdadeiramente, porque O Abençoado Jesus não teve nada aqui, nenhuma honra do mundo foi concedida a Ele, até mesmo as mais comuns civilidades Lhe foram negadas, Ele não teve lugar para recostar Sua cabeça nem, tanto quando sabemos, possuiu um centavo. Suas bênçãos foram em outra esfera, Sua exaltação está no céu, Ele é coroado com glória e honra à destra de Deus. Ele é o Homem da alegria perpétua hoje, porque Ele entrou na plenitude da alegria na presença de Deus, e esses prazeres estão à Sua destra para sempre.
“Pois o puseste por bênção para sempre e o encheste de gozo com a tua presença” (Sl 21:6).
Alguns momento atrás me referi às bem-aventuranças como um retrato dAquele que é o mais formoso dos filhos dos homens, e agora vou chamar a atenção para um verso que segue: “Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus” (Mateus 5:12).
As bem-aventuranças têm o seu gozo reservado no céu. Cristo tem Suas bênçãos, Sua recompensa e compensação ali. Tudo foi inadequado para Ele enquanto estava aqui, mas agora Ele está num cenário onde tudo é adequado à Sua Pessoa. Podemos verdadeiramente dizer:
“Ó Senhor, é uma alegria olhar para cima,
E Te ver no trono” (Hino 474)
Estamos ainda vivenciando Sua rejeição, mas nos alegramos em Sua exaltação hoje e, por meio da infinita graça, somos ligados a Ele no lugar de Sua alegria e glória. O que poderia ser mais maravilhoso e abençoado?
“Deus, o teu Deus, te ungiu com o óleo de alegria, como a nenhum dos teus companheiros” (verso 7)
Aqui nos é descortinado o fato maravilhoso de que Cristo em Glória tem “companheiros” (ou associados).
Sobre a terra Ele estava solitário em Sua beleza – só um grão de trigo solitário. Não poderia haver uma ligação entre o Segundo Homem que veio do céu e a raça pecadora de Adão. Mas, em Sua morte, toda a raça pela qual Ele morreu foi condenada e colocada de lado em julgamento, e como Aquele que foi ressurreto e glorificado Ele se tornou no Cabeça de uma nova raça, a quem Ele concedeu vida eterna e que está agora associada a Ele em Seu maravilhoso lugar como Homem, diante de Deus e do Pai.
Pela vontade de Deus somos “santificados” por meio da oferta do corpo de Jesus, de uma vez por todas (Hb 10:10). Isso é, por meio de Sua morte, fomos separados de tudo que éramos na carne, para que pudéssemos ser dEle em uma nova criação – todos um com Ele – Seus companheiros.
“Pois, tanto o que santifica como os que são santificados, todos vêm de um só. Por isso, é que ele não se envergonha de lhes chamar irmãos” (Hebreus 2:11).
Amados irmãos, isso não cativa e satisfaz o nosso coração? Ver que pela morte de Cristo tenho o direito de ser livre de mim mesmo – deixar para trás tudo que sou na carne – para poder passar para uma associação consciente com Aquele Ser bendito em glória.
Verdadeiramente meu coração recebeu um novo centro, e começou a aprender com Deus da grandeza dos pensamentos do amor Divino. Começo a perceber a imensidão do propósito e da graça de Deus, e me perco em admiração, amor e louvor.
Assim, aprendemos do caráter e da dignidade do grupo sacerdotal a quem Cristo denomina “meus irmãos”, e a quem Ele pode declarar o Nome do Pai [Hb 2:11,12]. Pois, se aprendermos essas coisas preciosas individualmente, poderemos então conhecer o caráter do grupo do qual, através da graça, pertencemos.
Perceba também que temos uma menção do Espírito Santo em conexão com isso: “Deus, te ungiu com o óleo de alegria como a nenhum dos teus companheiros” [Hebreus 1:9]. O dom do Espírito está relacionado ao fato de Jesus estar glorificado (Jo 7:39). O Espírito Santo nos liga a Cristo em glória. Como O Homem glorificado, Ele recebeu o Espírito Santo (At 2:33) e Ele compartilha essa unção com Seus irmãos. Como Aarão e seus filhos foram aspergidos com o mesmo “óleo de unção” no dia de sua consagração (Êx 29:21), assim também Cristo e Seus “irmãos” têm sua bendita unção em comum.
Ainda assim, Ele precisa ter a preeminência nisso também, como tem em tudo mais. Ele é ungido “acima” de Seus companheiros, e nossa fé e amor se regozijam que seja assim.
Agora observe como o Espírito Santo é referido aqui: “óleo de alegria”. No Novo Testamento encontramos, repetidas vezes, a informação de que essa Alegria está relacionada ao Espírito Santo. “Os discípulos, porém, transbordavam de alegria e do Espírito Santo”(At 13:52). “Alegria no Espírito Santo”(Rm 14:17). (Compare com Efésios 5:18,19).
Isso não nos concede uma gloriosa luz sobre o caráter das alegrias do Cristão? O Espírito Santo é o poder Divino por meio do qual nossos corações são trazidos à uma associação consciente com Cristo. Ele é a “fonte a jorrar para a vida eterna” (Jo 4:14).
Sua habitação em nós concede-nos a capacidade de saborearmos das alegrias celestiais, daquela cena inefável, quando Cristo adentrou como o “Glorificado do Pai”. Não ansiamos por provar dessas alegrias? Estamos preparados para buscá-las? Realmente cremos que o Espírito Santo habita em nós, para fazer nosso coração transbordar de alegria celestial?
“Todas as tuas vestes recendem a mirra, aloés e cássia; de palácios de marfim ressoam instrumentos de cordas que te alegram” (verso 8).
O efeito da alegria é a fragrância exterior: “Todas as tuas vestes recendem a mirra, aloés e cássia; de palácios de marfim ressoam instrumentos de cordas que te alegram” (verso 8).
Considero essa fragrância o fruto do Espírito – as qualidades, graças e perfeições morais de Cristo – “amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio” (Gl 5:22).
Não tenho dúvida de que todos deveríamos desejar exalar tal perfume, mas estou certo de que isso apenas acontecerá na mesma medida que estivermos desfrutando da alegria que mencionei.
A forte impressão que causaremos nas pessoas não será fruto da clareza ou da precisão de nosso conhecimento das Escrituras, nem da habilidade com a qual podemos apresentar a verdade, mas sim o fato delas poderem discernir em nós o verdadeiro desfrute de uma satisfação interior e alegria, coisa que elas desconhecem.
Me lembro de ouvir um servo amado do Senhor falar do conhecimento de Cristo em glória. Fui grandemente impressionado, mas não primeiramente pela informação que ele passou, mas por sua convicção. “Aquele homem tinha algo que desejava possuir”.
Se outros podem ver que temos algo que eles ainda não tem, isso os deixará sedentos por desfrutar daquilo também. Nada ajuda mais as pessoas mais do que isso. Logo eles percebem que desfrutamos dessa “alegria” celestial em nossas almas. Se essa alegria existir no nosso interior, certamente haverá uma fragrância no exterior.
Que cada um de nós experimente dessa bendita realidade para que, ao invés de sedentos, possamos estar satisfeitos e transbordantes.
“Cristo, cuja glória enche os céus,
Cristo, a única e verdadeira luz,
Levanta-te, Sol da Justiça!
Triunfa sobre as sombras da noite;
Achegue-se, alvorada celestial!
Estrela da manhã, brilhe em meu coração!
Escura e triste é a aurora,
Se vier desacompanhada de Ti;
Enfadonho, retorna o dia,
Até contemplar Tua misericórdia;
e Tua luz interior encher
de alegria e aquecer meu coração.
Visita, então, esta minha alma;
Perfure a escuridão do pecado e da dor;
Enche-me, radiante Sol divino;
Dissipa toda a incredulidade;
Mais e mais, exibe Sua Pessoa,
Reluzindo, até o dia perfeito.
(Charles Wesley, tradução livre do hino Whose glory fills the skies).